Por
Jean Wyllys - Deputado Federal(PSOL-RJ)
Eu
havia prometido não responder à coluna do ex-diretor de redação
de Veja, José Roberto Guzzo, para não ampliar a voz dos imbecis.
Mas foram tantos os pedidos, tão sinceros, tão sentidos, que eu
dominei meu asco e decidi responder.
A coluna
publicada na edição desta semana do libelo da editora Abril — e
que trata sobre o relacionamento dele com uma cabra e sua rejeição
ao espinafre, e usa esses exemplos de sua vida pessoal como desculpa
para injuriar os homossexuais — é um monumento à ignorância, ao
mal gosto e ao preconceito.
Logo
no início, Guzzo usa o termo “homossexualismo” e se refere à
nossa orientação sexual como “estilo de vida gay”. Com relação
ao primeiro, é necessário esclarecer que as orientações sexuais
(seja você hétero, gay ou bi) não são tendências ideológicas ou
políticas nem doenças, de modo que não tem “ismo” nenhum. São
orientações da sexualidade, por isso se fala em “homossexualidade”,
“heterossexualidade” e “bissexualidade”. Não é uma opção,
como alguns acreditam por falta de informação: ninguém escolhe ser
gay, hétero ou bi.
O uso
do sufixo “ismo”, por Guzzo, é, portanto, proposital: os
homofóbicos o empregam para associar a homossexualidade à ideia de
algo que pode passar de uns a outros – “contagioso” como uma
doença – ou para reforçar o equívoco de que se trata de uma
“opção” de vida ou de pensamento da qual se pode fazer
proselitismo.
Não
se trata de burrice da parte do colunista portanto, mas de má fé.
Se fosse só burrice, bastaria informar a Guzzo que a orientação
sexual é constitutiva da subjetividade de cada um/a e que esta não
muda (Gosta-se de homem ou de mulher desde sempre e se continua
gostando); e que não há um “estilo de vida gay” da mesma
maneira que não há um “estilo de vida hétero”.
A má fé
conjugada de desonestidade intelectual não permitiu ao colunista
sequer ponderar que heterossexuais e homossexuais partilham alguns
estilos de vida que nada têm a ver com suas orientações sexuais!
Aliás, esse deslize lógico só não é mais constrangedor do que
sua afirmação de que não se pode falar em comunidade gay e que o
movimento gay não existe porque os homossexuais são distintos. E o
movimento negro? E o movimento de mulheres? Todos os negros e todas
as mulheres são iguais, fabricados em série?
A
comunidade LGBT existe em sua dispersão, composta de indivíduos que
são diferentes entre si, que têm diferentes caracteres físicos,
estilos de vida, ideias, convicções religiosas ou políticas,
ocupações, profissões, aspirações na vida, times de futebol e
preferências artísticas, mas que partilham um sentimento de
pertencer a um grupo cuja base de identificação é ser vítima da
injúria, da difamação e da negação de direitos! Negar que haja
uma comunidade LGBT é ignorar os fatos ou inscrição das relações
afetivas, culturais, econômicas e políticas dos LGBTs nas
topografias das cidades. Mesmo com nossas diferenças, partilhamos um
sentimento de identificação que se materializa em espaços e
representações comuns a todos. E é desse sentimento que nasce, em
muitos (mas não em todos, infelizmente) a vontade de agir
politicamente em nome do coletivo; é dele que nasce o movimento
LGBT. O movimento negro — também oriundo de uma comunidade
dispersa que, ao mesmo tempo, partilha um sentimento de pertença —
existe pela mesma razão que o movimento LGBT: porque há
preconceitos a serem derrubados, injustiças e violências
específicas contra as quais lutar e direitos a conquistar.
A
luta do movimento LGBT pelo casamento civil igualitário é
semelhante à que os negros tiveram que travar nos EUA para derrubar
a interdição do casamento interracial, proibido até meados do
século XX. E essa proibição era justificada com argumentos muito
semelhantes aos que Guzzo usa contra o casamento entre pessoas do
mesmo sexo.
Afirma
o colunista de Veja que nós os homossexuais queremos “ser tratados
como uma categoria diferente de cidadãos, merecedora de mais e mais
direitos”, e pouco depois ele coloca como exemplo a luta pelo
casamento civil igualitário. Ora, quando nós, gays e lésbicas,
lutamos pelo direito ao casamento civil, o que estamos reclamando é,
justamente, não sermos mais tratados como uma categoria diferente de
cidadãos, mas igual aos outros cidadãos e cidadãs, com os mesmos
direitos, nem mais nem menos. É tão simples! Guzzo diz que “o
casamento, por lei, é a união entre um homem e uma mulher; não
pode ser outra coisa”. Ora, mas é a lei que queremos mudar! Por
lei, a escravidão de negros foi legal e o voto feminino foi
proibido. Mas, felizmente, a sociedade avança e as leis mudam. O
casamento entre pessoas do mesmo sexo já é legal em muitos países
onde antes não era. E vamos conquistar também no Brasil!
Os
argumentos de Guzzo contra o casamento igualitário seriam uma
confissão pública de estupidez se não fosse uma peça de má fé e
desonestidade intelectual a serviço do reacionarismo da revista. Ele
afirma: “Um homem também não pode se casar com uma cabra, por
exemplo; pode até ter uma relação estável com ela, mas não pode
se casar”. Eu não sei que tipo de relação estável o senhor
Guzzo tem com a sua cabra, mas duvido que alguém possa ter, com uma
cabra, o tipo de relação que é possível ter com um cabra — como
Riobaldo, o cabra macho que se apaixonou por Diadorim, que ele
julgava ser um homem, no romance monumental de Guimarães Rosa. O que
ele chama de “relacionamento” com sua cabra é uma fantasia, pois
falta o intersubjetivo, a reciprocidade que, no amor e no sexo, só é
possível com outro ser humano adulto: duvido que a cabra dele
entenda o que ele porventura faz com ela como um “relacionamento”.
Guzzo
também argumenta que “se alguém diz que não gosta de gays, ou
algo parecido, não está praticando crime algum – a lei, afinal,
não obriga nenhum cidadão a gostar de homossexuais, ou de
espinafre, ou de seja lá o que for”. Bom, os gays somos como o
espinafre ou como as cabras. Esse é o nível do debate que a Veja
propõe aos seus leitores.
Não,
senhor Guzzo, a lei não pode obrigar ninguém a “gostar” de
gays, negros, judeus, nordestinos, travestis, imigrantes ou cristãos.
E ninguém propõe que essa obrigação exista. Pode-se gostar ou não
gostar de quem quiser na sua intimidade (De cabra, inclusive, caro
Guzzo, por mais estranho que seu gosto me pareça!). Mas não se pode
injuriar, ofender, agredir, exercer violência, privar de direitos. É
disso que se trata.
O
colunista, em sua desonestidade intelectual, também apela para uma
comparação descabida: “Pelos últimos números disponíveis,
entre 250 e 300 homossexuais foram assassinados em 2010 no Brasil.
Mas, num país onde se cometem 50000 homicídios por ano, parece
claro que o problema não é a violência contra os gays; é a
violência contra todos”. O que Guzzo não diz, de propósito
(porque se trata de enganar os incautos), é que esses 300
homossexuais foram assassinados por sua orientação sexual! Essas
estatísticas não incluem os gays mortos em assaltos, tiroteios,
sequestros, acidentes de carro ou pela violência do tráfico, das
milícias ou da polícia.
As
estatísticas se referem aos LGBTs assassinados exclusivamente por
conta de sua orientação sexual e/ou identidade de gênero! Negar
isso é o mesmo que negar a violência racista que só se abate sobre
pessoas de pele preta, como as humilhações em operações
policiais, os “convites” a se dirigirem a elevadores de serviço
e as mortes em “autos de resistência”.
Qual
seria a reação de todos nós se Veja tivesse publicado uma coluna
em que comparasse os negros com cabras e os judeus com espinafre? Eu
não espero pelo dia em que os homens concordem, mas tenho esperança
de que esteja cada vez mais perto o dia em que as pessoas lerão
colunas como a de Guzzo e dirão “veja que lixo!”.