terça-feira, 23 de junho de 2020

FRAGMENTOS DE MEMÓRIA RECENTE

Este fragmento autobiográfico estabelece um diálogo entre memória e experiência educacional no Brasil da Ditadura Militar. São marcas do cotidiano de uma experiência pessoal, num passado recente, dentro de um processo político autoritário com efeitos sobre os indivíduos, o processo educacional e a sociedade.*
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Todo começo é um fantasma a nos apavorar antes de chegar ao fim do percurso. Sinto-me assim, e por isso, recordo a famosa pergunta feita a Amundsen no romance filosófico O Mundo de Sofia: “Quem é você?” (GAARDEN: 1965, p. 14). Não sei ainda, mas poeticamente, sou um ser humano em desconstrução. Dito isto, para espantar os temores deste início, publico que nasci em pleno alvorecer do “submundo” dos Atos Institucionais da Ditadura Militar no Brasil. Mas, segundo os documentos oficiais, nasci em Baturité-Ceará, em 04 de julho de 1965 às 3h25. Para mim, dia sugestivo de constrangimento só por lembrar a famosa data dos Estados Unidos (EUA), num quase autoexplicativo “antiamericanismo”, interpretado à época como sinônimo de anti-imperialismo que me influenciou durante a juventude e penso que afetou boa parte dos jovens que sonhavam mudar o Brasil e o mundo.
Neste período singular da história brasileira, não pude vivenciar conscientemente as mudanças políticas que afetavam o país, mas somente sofrer inconscientemente seus efeitos via os transtornos psicológicos dos próprios pais. Hoje, melhor situado historicamente, reflito com Vicentini e Lugli, quando afirmam: “Não se pode deixar de mencionar os efeitos da ditadura militar (1964-1985) sobre a docência” (VICENTINI, LUGLI: 2009, p. 222). Concordo, mas imagino que os efeitos políticos foram catastróficos para além da educação formal, se estendendo à vida da maioria dos brasileiros.
Quanto à família, vivíamos em situação de pobreza em Baturité, no interior do estado do Ceará, sem perspectiva de lazer ou cultura “refinada”. Meus pais eram diametralmente opostos do ponto de vista sociocultural.
Minha mãe, filha de camponeses, morava numa localidade próxima ao sítio Olho D’água onde se localiza o Mosteiro dos Jesuítas. Era uma mulher que lutava pelos estudos para superar a “dureza” da vida do campo, um caso de sucesso raríssimo na história da família de origem simples. Tornou-se professora de matemática e ensino religioso. Anos depois, morando em Fortaleza, separada do marido e com cinco filhos passando necessidade, foi afetada por problemas psicológicos, provavelmente causados pela tragédia social da vida, sendo internada como “louca” nos hospícios da capital. Entretanto, segundo relatos familiares, um fato inusitado ocorreu quando ela solicitou ao médico psiquiatra uma permissão especial para concorrer ao vestibular, sendo que os médicos se espantaram com o insólito pedido e lhe deram alta depois de três dias. Posteriormente, foi aprovada no vestibular da antiga Faculdade de Filosofia de Fortaleza (FAFIFOR), provocando uma surpresa geral entre os amigos e familiares. Obteve assim, o título de graduação em Filosofia. Mas falar sobre a vida dela seria escrever um livro, o que não é o caso agora.
Meu pai, filho de comerciante de uma loja no centro desta pequena cidade interiorana, vivia como se fizesse parte da “nobreza”, mas sem propriedade e sem títulos. Politicamente se inseria no contexto de uma fraca oposição aos militares, participando do Movimento Democrático Brasileiro – MDB. Estudou pouco e não concluiu o ensino ginasial. Quando se mudou para a Capital, transformou-se em comerciante ambulante no centro da cidade de Fortaleza onde fundou a Associação dos Profissionais do Comércio de Vendedores Ambulantes do Estado do Ceará (APROVACE), implantando o famoso “Beco da Poeira” a partir de um processo de revitalização do centro de Fortaleza na gestão Maria Luiza. Em 1991, o “Beco” se transformou em Centro Comercial de Pequenos Negócios na gestão Juracy Magalhães.
Este brevíssimo relato sobre a família contextualiza socialmente o quadro em que se desenvolveu a minha vida e como fui inserido nos estudos formais. De fato, comecei a frequentar o chamado “Grupo Escolar” por volta dos cinco ou seis anos, no início da década de 70, ainda em Baturité-Ce. Naquela época, em pleno “jardim escolar”, pouco entendia o que estava fazendo naquele lugar, muito menos sobre política ou sobre a minha própria existência. O fato marcante foi o “lanche”, na hora do intervalo – tipo “bananada” – que me entregavam pelo portão dos fundos da escola, já que morava próximo. Assim, sobre os primeiros anos da experiência escolar, não recordo de mais nada.
Na capital, por volta de 1975, iniciei o ensino fundamental na Escola Anízio Teixeira, no bairro Pan-americano. Mas, antes de ser aceito, sobrevivi à primeira rejeição na educação formal, tendo que retornar somente após um reforço na alfabetização. Lembro-me de certo “leite róseo” servido na “merenda escolar” em que o aluno levava o próprio vasilhame. Do espaço escolar, recordo-me das brigas com outros colegas e das filas para cantar o hino nacional antes do início da aula.
A família buscava novas oportunidades na vida, mas a separação dos pais ocorreu em situação de miséria quase absoluta. Neste contexto, deslumbro a música “Quando será?” de Zé Rodrix, quando ele diz: “eu não sabia dos problemas que a família tinha, morando apertada num barraco na beira da linha”. Assim, após todos os entes retornarem de um período na casa de familiares, restou-nos morar em uma casa de taipa na favela à beira do trilho no bairro Couto Fernandes.
Decerto, algumas lembranças involuntárias me fazem pensar na existência de uma “memória olfativa”, senão no sentido de “pulsão olfativa” de Freud, mas no sentido de sensibilidade que aflora na memória ao recordar um cheiro específico do espaço da favela. Talvez, haja uma relação entre um determinado cheiro de fumaça que vinha do outro lado da linha com as lembranças dos momentos ímpares da minha adolescência. No universo das memórias, a vida era abrilhantada pela inocência e pela trilha sonora de Genival Santos. E, em família, juntavam-se as crianças da comunidade na sala apertada e diante do aparelho de televisão em “preto e branco”, assistíamos todos maravilhados aos jogos da seleção brasileira da Copa do Mundo de 1978.
Não havia “crise de consciência” nem tempo para reclamar, pois enquanto eu aprendia a sociabilidade juvenil nas ruas da favela do trilho na cidade alencarina, o país explodia em greves de trabalhadores no ABC paulista. No campo da educação, mais especificamente, insurgia a greve dos professores de São Paulo avançando na discussão sobre a profissionalização da educação. “Já nas greves de 1978 e de 1979, os professores – apesar da ditadura militar – se apresentaram como trabalhadores em educação e se referiam ao estado como patrão, opondo à pretensa neutralidade política das associações representativas da categoria.” (VICENTINI, LUGLI: 2009, p. 190).
Aqui no Ceará, como um pré-adolescente, obviamente não passava por mim qualquer reflexão sobre o processo educativo e as lutas sociais, pois continuava seguindo o script da “matrix” do ensino ginasial na Escola Joaquim Alves e depois na Escola Antonieta Siqueira, no bairro Pici. Das lembranças, posso citar o caso das aulas de técnicas comerciais na própria escola, representando todo o processo de circulação da mercadoria com a mediação simbólica do uso de cheque. Também, cito a horta escolar que ensinava a cultivar e valorizar a natureza. No final do ensino fundamental (8ª série), pela primeira vez, eu ficava em recuperação na disciplina de matemática. Apesar da tensão, do terror que o professor transmitia, pude me superar e estudar mais apropriadamente sobre a fórmula de Bháskara e sua aplicação nas equações completas do 2º grau.
Nesta época, por necessidade e não por coincidência, eu já trabalhava vendendo frutas e verduras nas ruas próximas à escola, gerando uma tentativa fracassada de algo que hoje seria chamado de bullying. No campo político, o país vivia o processo da Anistia e o retorno dos exilados e democratas. O Brasil mudou, o mundo mudou, mas não tanto quanto precisava. Nós também mudamos, mas em que direção?
Concluí o ensino fundamental alheio a tudo isto.       


*Texto apresentado na Disciplina do Mestrado em Educação da UECE (2015), ministrada pela professora Fátima Leitão e pelo professor Germano Magalhães.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GAARDEN, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia; tradução João Azenha Jr. – São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

VICENTINI, Paula Perin; LUGLI, Rosario Genta. História da Profissão Docente no Brasil: representações em disputa. São Paulo: Cortez, 2009. (Biblioteca básica da história da educação brasileira).