Este fragmento autobiográfico estabelece um diálogo entre memória e experiência
educacional no Brasil da Ditadura Militar. São marcas do cotidiano de uma experiência pessoal, num passado recente, dentro de um processo político
autoritário com efeitos sobre os indivíduos, o processo educacional e a
sociedade.*
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Todo começo é um fantasma a
nos apavorar antes de chegar ao fim do percurso. Sinto-me assim, e por isso,
recordo a famosa pergunta feita a Amundsen no romance filosófico O Mundo de
Sofia: “Quem é você?” (GAARDEN: 1965, p. 14). Não sei ainda, mas poeticamente,
sou um ser humano em desconstrução. Dito isto, para espantar os temores deste
início, publico que nasci em pleno alvorecer do “submundo” dos Atos
Institucionais da Ditadura Militar no Brasil. Mas, segundo os documentos
oficiais, nasci em
Baturité-Ceará, em 04 de julho de 1965 às 3h25. Para mim, dia sugestivo de
constrangimento só por lembrar a famosa data dos Estados Unidos (EUA),
num quase autoexplicativo “antiamericanismo”, interpretado à época como sinônimo
de anti-imperialismo que me influenciou durante a juventude e penso que afetou
boa parte dos jovens que sonhavam mudar o Brasil e o mundo.
Neste período
singular da história brasileira, não pude vivenciar conscientemente as mudanças
políticas que afetavam o país, mas somente sofrer inconscientemente seus
efeitos via os transtornos psicológicos dos próprios pais. Hoje, melhor situado
historicamente, reflito com Vicentini e Lugli, quando afirmam: “Não se pode
deixar de mencionar os efeitos da ditadura militar (1964-1985) sobre a
docência” (VICENTINI, LUGLI: 2009, p. 222). Concordo, mas imagino que os
efeitos políticos foram catastróficos para além da educação formal, se estendendo
à vida da maioria dos brasileiros.
Quanto à
família, vivíamos em situação de pobreza em Baturité, no interior do estado do
Ceará, sem perspectiva de lazer ou cultura “refinada”. Meus pais eram
diametralmente opostos do ponto de vista sociocultural.
Minha mãe, filha
de camponeses, morava numa localidade próxima ao sítio Olho D’água onde se
localiza o Mosteiro dos Jesuítas. Era uma mulher que lutava pelos estudos para
superar a “dureza” da vida do campo, um caso de sucesso raríssimo na história da
família de origem simples. Tornou-se professora de matemática e ensino
religioso. Anos depois, morando em Fortaleza, separada do marido e com cinco
filhos passando necessidade, foi afetada por problemas psicológicos,
provavelmente causados pela tragédia social da vida, sendo internada como
“louca” nos hospícios da capital. Entretanto, segundo relatos familiares, um fato
inusitado ocorreu quando ela solicitou ao médico psiquiatra uma permissão especial
para concorrer ao vestibular, sendo que os médicos se espantaram com o insólito
pedido e lhe deram alta depois de três dias. Posteriormente, foi aprovada no
vestibular da antiga Faculdade de Filosofia de Fortaleza (FAFIFOR), provocando
uma surpresa geral entre os amigos e familiares. Obteve assim, o título de graduação em
Filosofia. Mas falar sobre a vida dela seria escrever um livro, o que não é o
caso agora.
Meu pai, filho
de comerciante de uma loja no centro desta pequena cidade interiorana, vivia
como se fizesse parte da “nobreza”, mas sem propriedade e sem títulos. Politicamente
se inseria no contexto de uma fraca oposição aos militares, participando do
Movimento Democrático Brasileiro – MDB. Estudou pouco e não concluiu o ensino
ginasial. Quando se mudou para a Capital, transformou-se em comerciante
ambulante no centro da cidade de Fortaleza onde fundou a Associação dos
Profissionais do Comércio de Vendedores Ambulantes do Estado do Ceará
(APROVACE), implantando o famoso “Beco da Poeira” a partir de um processo de
revitalização do centro de Fortaleza na gestão Maria Luiza. Em 1991, o “Beco”
se transformou em Centro Comercial de Pequenos Negócios na gestão Juracy
Magalhães.
Este brevíssimo
relato sobre a família contextualiza socialmente o quadro em que se desenvolveu
a minha vida e como fui inserido nos estudos formais. De fato, comecei a
frequentar o chamado “Grupo Escolar” por volta dos cinco ou seis anos, no
início da década de 70, ainda em Baturité-Ce. Naquela época, em pleno “jardim
escolar”, pouco entendia o que estava fazendo naquele lugar, muito menos sobre
política ou sobre a minha própria existência. O fato marcante foi o “lanche”,
na hora do intervalo – tipo “bananada” – que me entregavam pelo portão dos
fundos da escola, já que morava próximo. Assim, sobre os primeiros anos da
experiência escolar, não recordo de mais nada.
Na capital, por
volta de 1975, iniciei o ensino fundamental na Escola Anízio Teixeira, no
bairro Pan-americano. Mas, antes de ser aceito, sobrevivi à primeira rejeição
na educação formal, tendo que retornar somente após um reforço na alfabetização.
Lembro-me de certo “leite róseo” servido na “merenda escolar” em que o aluno
levava o próprio vasilhame. Do espaço escolar, recordo-me das brigas com outros
colegas e das filas para cantar o hino nacional antes do início da aula.
A família
buscava novas oportunidades na vida, mas a separação dos pais ocorreu em
situação de miséria quase absoluta. Neste contexto, deslumbro a música “Quando
será?” de Zé Rodrix, quando ele diz: “eu não sabia dos problemas que a família
tinha, morando apertada num barraco na beira da linha”. Assim, após todos os
entes retornarem de um período na casa de familiares, restou-nos morar em uma
casa de taipa na favela à beira do trilho no bairro Couto Fernandes.
Decerto, algumas
lembranças involuntárias me fazem pensar na existência de uma “memória
olfativa”, senão no sentido de “pulsão olfativa” de Freud, mas no sentido de
sensibilidade que aflora na memória ao recordar um cheiro específico do espaço
da favela. Talvez, haja uma relação entre um determinado cheiro de fumaça que
vinha do outro lado da linha com as lembranças dos momentos ímpares da minha
adolescência. No universo das memórias, a vida era abrilhantada pela inocência
e pela trilha sonora de Genival Santos. E, em família, juntavam-se as crianças
da comunidade na sala apertada e diante do aparelho de televisão em “preto e
branco”, assistíamos todos maravilhados aos jogos da seleção brasileira da Copa
do Mundo de 1978.
Não havia “crise
de consciência” nem tempo para reclamar, pois enquanto eu aprendia a
sociabilidade juvenil nas ruas da favela do trilho na cidade alencarina, o país
explodia em greves de trabalhadores no ABC paulista. No campo da educação, mais
especificamente, insurgia a greve dos professores de São Paulo avançando na
discussão sobre a profissionalização da educação. “Já nas greves
de 1978 e de 1979, os professores – apesar da ditadura militar – se
apresentaram como trabalhadores em educação e se referiam ao estado como
patrão, opondo à pretensa neutralidade política das associações representativas
da categoria.” (VICENTINI, LUGLI: 2009, p. 190).
Aqui no Ceará,
como um pré-adolescente, obviamente não passava por mim qualquer reflexão sobre
o processo educativo e as lutas sociais, pois continuava seguindo o script da
“matrix” do ensino ginasial na Escola Joaquim Alves e depois na Escola
Antonieta Siqueira, no bairro Pici. Das lembranças, posso citar o caso das
aulas de técnicas comerciais na própria escola, representando todo o processo
de circulação da mercadoria com a mediação simbólica do uso de cheque. Também,
cito a horta escolar que ensinava a cultivar e valorizar a natureza. No final
do ensino fundamental (8ª série), pela primeira vez, eu ficava em recuperação
na disciplina de matemática. Apesar da tensão, do terror que o professor
transmitia, pude me superar e estudar mais apropriadamente sobre a fórmula de
Bháskara e sua aplicação nas equações completas do 2º grau.
Nesta época, por
necessidade e não por coincidência, eu já trabalhava vendendo frutas e verduras
nas ruas próximas à escola, gerando uma tentativa fracassada de algo que hoje
seria chamado de bullying. No campo político, o país vivia o processo da
Anistia e o retorno dos exilados e democratas. O Brasil mudou, o mundo mudou,
mas não tanto quanto precisava. Nós também mudamos, mas em que direção?
Concluí o ensino
fundamental alheio a tudo isto.
*Texto apresentado na Disciplina do Mestrado em Educação da UECE (2015), ministrada pela professora Fátima Leitão e pelo professor Germano Magalhães.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GAARDEN, Jostein. O mundo de
Sofia: romance da história da filosofia; tradução João Azenha Jr. – São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
VICENTINI, Paula Perin; LUGLI, Rosario Genta. História da Profissão Docente no Brasil: representações em disputa.
São Paulo: Cortez, 2009. (Biblioteca básica da história da educação brasileira).
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