quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Monólogo: Belchior


"Como vão as coisas?

Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte
Porque apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte
E tenho comigo pensado Deus é brasileiro e anda do meu lado
E assim já não posso sofrer no ano passado
Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro

Como Poe, poeta louco americano, eu pergunto o que se faz?

Em mim, desse canto daqui – lugar comum –
como no assum, azul de preto,
o canto é que faz cantar.
Cresce e aparece em minha vida e eu me renovo
no canto – o pio do povo. 
Pio. É preciso piar.

O que é que pode fazer o homem comum
Neste presente instante?

Tenho ouvido muitos discos, 
conversado com pessoas, caminhado meu caminho
Papo, som dentro da noite e não tenho um amigo sequer
E não acredite nisso, não, tudo muda e com toda razão

O que é que pode fazer a juventude?

O que transforma o velho no novo
bendito fruto do povo será.
E a única forma que pode ser norma
é nenhuma regra ter;
é nunca fazer nada que o mestre mandar.
Sempre desobedecer.
Nunca reverenciar.

E um simples cantador das coisas do porão?

Você não sente nem vê 
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo 
Que uma nova mudança em breve vai acontecer 
E o que há algum tempo era jovem novo 
Hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer

Qual é o preço de um homem?

No escritório em que eu trabalho e fico rico
Quanto mais eu multiplico diminui o meu amor

E eu? Pago quanto para ser feliz

Nada, nada
Nada,absolutamente nada. 
E o aguapé, lá na lagoa
Sobre a água nada
E deixa a borda da canoa
Perfumada
É a chaminé à toa
De uma fábrica, montada
Sob a água, que fabrica
Este ar puro da alvorada.

E a glória? 
E a honra de seres humanos 
que Deus criou
E pôs um pouquinho 
só abaixo de seus anjos?

Não me peça que lhe faça uma canção como se deve
Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve
Sons, palavras, são navalhas e eu não posso cantar como convém 
Sem querer ferir ninguém

Para que levar a vida assim tão a sério?

São mil milhões de habitantes deste parque industrial
Negros, mulheres, menores, filhos da crise geral
Iguais pela mesma bomba que vai cair no quintal 
Ídolo e Deus dos esgotos a musa urbana me fez. 
Meu sucesso é saber disso e bater tudo pra vocês.

Assaltantes, abandonados
bêbados, índios, nordestinos
retirantes, prostitutas, pivetes
Punks, pobres, suicidas, solitários
De onde eles vêm?

Aqui – Nordeste! – um país de esquecidos,
Humilhados, 
ofendidos
e sem direito ao porvir.
Aqui – Nordeste! – Sul América do sono...
no reino do abandono
não há lugar pra onde ir.

Quem viu, na vida, novidade em estar vivo?

Noite é vida e vida é jogo e jogo é sorte e sorte
é vária; coisa muito complicada: o amigo tem ou não tem.

Medo, Medo, Medo, o que acontecerá?

Tudo poderia ter mudado, sim,
pelo trabalho que fizemos - tu e eu.
Mas o dinheiro é cruel
e um vento forte levou os amigos
para longe das conversas, dos cafés e dos abrigos,
e nossa esperança de jovens não aconteceu, não, não.

Onde anda o tipo afoito 
Que em 1-9-6-8
Queria tomar o poder?

Você fica perdendo o sono, 
pretendendo ser o dono das palavras, 
ser a voz do que é novo; 
e a vida, sempre nova, 
acontecendo de surpresa, 
caindo como pedra sobre o povo.

Esses senhores se sentam à mesa
Decidem por nós… Negociações…
Estúpidos e idiotas da política!
Dólares, tanques e mísseis
Meu coração tropical não agüenta
E o Cruzeiro do Sul, que não nos orienta?

É! meus amigos,
Um novo momento precisa chegar.
Eu sei que é difícil começar tudo de novo,
Mas eu quero tentar.

Onde os puros saberes?
Onde a fúria de seres humanos
Contra a ira dos deuses?

Trogloditas, traficantes, neonazistas, 
farsantes: barbárie, devastação.
O rinoceronte é mais decente 
do que essa gente demente 
do Ocidente tão cristão.

E então? Vencemos o crime?

Eles venceram e o sinal está fechado 
pra nós que somos jovens...

Ah! Donde estona Los estudantes? 
Os rapazes latinos -americanos? 
Os aventureiros, os anarquistas, 
os artistas? Os sem destinos, 
os renegados, os sonhadores? 
Esperávamos os alquimistas, 
e La vem chegando os bárbaros, 
os arrivistas, os consumistas, 
os mercadores minas, 
homens não há mais?

Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo
Tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmo e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como nossos pais.

E no planeta juventude haverá vida inteligente?

Enquanto esses dementes tomam por amantes 
bombas e usinas eu canto, eu danço, eu fumo, 
eu bebo, eu como, eu gozo com essas meninas 
E se você vier com essa: que sou ingênuo,
artista louco; digo: eu concordo. 
Eu pinto, eu bordo, eu vivo muito 
e ainda acho pouco. 
Por isso é sempre novo afirmar: 
Não faça a guerra. Faça o amor... 
E viva a vida e seus instintos no poder da flor.

Entre o céu e a terra não há mais nada 
que sex, drugs and rock`n`roll?

Cai na estrada tirana: (A juventude é um dom!) 
Garotas, sonhos, mil transas, Como dar bandeira é bom! 
Olhando a cidade grande Cheia de fúria e de som; 
Querendo ser uma estrela De sexo, laser e neon... 
Cidade grande é uma droga Mas o rock dá o tom

E o fim como pode acontecer?

Quero desejar, antes do fim, pra mim 
e os meus amigos, muito amor e tudo mais; 
que fiquem sempre jovens 
e tenham as mãos limpas 
e aprendam o delírio com coisas reais. 
Não tome cuidado. 
Não tome cuidado comigo: 
o canto foi aprovado 
e Deus é seu amigo. 
Não tome cuidado. 
Não tome cuidado comigo, 
que eu não sou perigoso: - 
Viver é que é o grande perigo

Quanto suicídio, garotos no esgoto...
São ratos? São homens suaves e a noite? 
Seremos vencidos?

Não cante vitória muito cedo, não. 
Nem leve flores para a cova do inimigo, 
que as lágrimas do jovem são fortes 
como um segredo: 
podem fazer renascer um mal antigo.

E a honra dos seres humanos que Deus 
criou pôs um pouquinho só abaixo dos seus anjos?

Esses senhores não querem nada 
não querem perder tempo 
com essa porcaria que se chama gente.

Poema, o que é um poema?

Eu não estou interessado em nenhuma teoria,
Nem nessas coisas do oriente, romances astrais
A minha alucinação é suportar o dia-a-dia,
E meu delírio é a experiência com coisas reais 
Longe o profeta do terror 
que a laranja mecânica anuncia 
amar, amar e mudas as coisas me interessa mais."


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