Cinema
Esse tio Carlos...
Em documentário, Isa Ferraz reconstrói a história de seu tio, Carlos Marighella
Por: Nina Fideles
Publicado em 22/10/2011
Isa (atrás de Marighella) mostra aspectos desconhecidos da vida do tio (foto: © divulgação)
Perto do centenário de nascimento de Carlos Marighella, a ser
completado em 5 de dezembro, Isa Grinspum Ferraz, socióloga,
documentarista e também sobrinha dele, construiu um filme especial sobre
a trajetória de um dos mais importantes militantes de esquerda do
século 20. Marighella tem 100 minutos e 32 depoimentos, entre eles o do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o do intelectual Antonio
Candido, e participação do ator Lázaro Ramos e do rapper Mano Brown, do
grupo Racionais MC’s. A proposta é mostrar outras faces do
revolucionário que viveu clandestinamente grande parte de sua vida.
É impossível contar a história do Brasil do século 20 sem citar seu
nome. Marighella foi perseguido por duas ditaduras, maldito nos anos de
chumbo e jogado à obscuridade por décadas de censura. Se a literatura já
oferece algum conteúdo a respeito desse personagem, Isa Ferraz
encontrou na linguagem do cinema espaço para desvendar aspectos pouco
conhecidos da trajetória do tio, negada a muitas gerações.
Poucos sabem, por exemplo, que mesmo clandestinamente o líder
comunista se vestia de mulher para pular carnaval. Era engraçado, amava
música e a Bahia. “Era uma figura doce, cuidadosa, que deixava
florzinhas para as meninas no café da manhã, quando saía na calada da
noite. Fazia paródias com as músicas de Roberto Carlos. Adorava Jackson
do Pandeiro e Dorival Caymmi. Era livre e inquieto. Lia de tudo.
Estudava a Bíblia, apesar de ser ateu”, descreve a sobrinha. Para
realizar o documentário, a cineasta teve de se desdobrar com as “20 e
poucas fotos” que foram encontradas na longa pesquisa. “A gente não
achou nenhuma imagem em movimento. O grande desafio foi contar essa
história sem nenhuma imagem dele, e assumi isso como linguagem”,
explica.
O filme começa a partir da descoberta de que o “tio Carlos” era quem
era. Após o sequestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke
Elbrick, no dia 4 de setembro de 1969 – que rendeu a libertação e asilo
político a 15 prisioneiros –, a perseguição aos militantes se
intensificou. “Naquele momento meu pai resolveu me contar, pois tinha
medo que eu visse os cartazes na rua e identificasse o meu tio. Convivia
com ele dentro de casa sem saber que era ‘o’ Marighella. Essa figura
que eu gostava muito e, ao mesmo tempo, era a pessoa mais procurada no
Brasil. Mas daí eu não o vi mais.”
Marighella, então com 57 anos, foi assassinado em uma emboscada
articulada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, do extinto Departamento
de Ordem Política e Social (Dops), na cidade de São Paulo. “Eu tive
acesso a outro lado dele. É o meu Marighella. Mas não é só o meu. É o do
Brasil”, define Isa.
Pedras, poemas, mil faces
Para definir Marighella, Mano Brown, convidado para criar uma música
inédita que finaliza o filme, recorreu às palavras utilizadas em sua
composição: Mil Faces de um Homem Leal. “Difícil definir um cara desses,
que botou a cara pra morrer. Ele era um romântico. Um sonhador que
levava a realidade no limite.” O rapper conhecia pouco de Marighella até
receber o convite da cineasta. Alguns amigos já haviam comentado
semelhanças entre eles, como ser filho de uma negra com um branco, ser
baiano, “assumir a cor e levar isso muito a sério sem discriminar
ninguém”.
Brown revela que a construção teve de se realizar a partir das
impressões de outras pessoas a respeito do personagem retratado na
música. “Ele não era um personagem do meu convívio. Se fosse da nossa
geração provavelmente seria um amigo nosso.” Depois de “ficar com essa
música na mão” por quatro meses, foi nos últimos 30 dias que conseguiu
embalar. “Não sabia por onde começar. Assisti ao filme e fui no tato.
Não podia plagiar os livros que já fizeram dele nem o filme. O cinema é
uma arte, o rap também é. Não foi um rap igual aos outros que fiz.”
Isa considera importante mostrar para as gerações de hoje, “muito
apegadas aos bens de consumo”, que uma geração inteira largou tudo –
família, amigos, estudos – para entregar a vida por uma ideia de país. E
comemora conseguir com o filme algo “quase inimaginável” hoje em dia.
“Trazer o Mano Brown e até mesmo o Lázaro Ramos ajuda a levar essa
história a um público que não a conhece ainda.”
Mulato, filho do imigrante italiano Augusto Marighella, operário e
anarquista, e da baiana Maria Rita, filha de escravos vindos do Sudão, o
revolucionário teve uma longa trajetória de militância. Em 1932, com
apenas 18 anos, ingressou no Partido Comunista do Brasil (então PCB) e
ao mesmo tempo no curso de Engenharia Civil. Sua primeira prisão, com 21
anos, foi causada por um poema em que criticava Juracy Magalhães –
nomeado por Getúlio Vargas interventor no estado da Bahia –, que mais
tarde seria presidente da Petrobras (o primeiro) e também da Companhia
Vale do Rio Doce.
Quando foi eleito deputado constituinte pelo estado da Bahia, em
1945, já havia experimentado a prisão por um ano, em 1936, e depois por
mais seis, a partir de 1939. No presídio de São Paulo, dizia-se que, se
havia um “macho” no PCB, este seria Marighella, que chegava a rir na
cara de torturadores. Escreveu livros, poemas e empunhou armas contra a
ditadura. Era uma pessoa muito “difícil de descrever com poucas
palavras”, diz Clara Charf, mulher do militante desde 1947 até o dia de
sua morte, em 4 de novembro de 1969, exatamente dois meses após o
sequestro.
Suas relações com países da América Latina e da Europa foram amplas.
Cuba chegou a referenciá-lo como o principal nome da revolução no
Brasil. Contos, poemas e livros de Marighella foram traduzidos para
diversas línguas. “Os Panteras Negras liam Marighella, as Brigadas
Vermelhas, na Itália. Cineastas franceses, italianos contribuíam com a
luta armada no Brasil, com a ALN. E provavelmente vão aparecer muitas
coisas ainda, pois pessoas que tinham medo de falar agora se veem mais à
vontade”, acredita Isa Ferraz, que não consegue dissociar a veia
política do tio de sua veia poética.
Ficaram famosos versos que inventava em respostas a questões de
física e matemática nas provas da faculdade. Quando esteve preso em
Fernando de Noronha (PE) por três anos, antes de ser transferido para
Ilha Grande (RJ), organizou trabalho cultural na ilha. “As pessoas não
podiam fugir porque tinha tubarão, não podiam receber visitas, não
podiam fazer nada. Ele achava que se não tivessem ocupação iriam
enlouquecer. Ele ensinava matemática, ciências, filosofia”, diz Clara.
O fato de ter rompido com o partido em 1967 e optado pela luta armada
contra a ditadura ao fundar a Ação Libertadora Nacional (ALN) levou o
rosto de Marighella aos cartazes de “procurados” no país. Para o regime
militar, era inimigo número um, bandido, monstro, assassino, terrorista.
Ao contrário disso, como conta Clara Charf, por onde passou deixou uma
imagem de pessoa solidária, valente, corajosa. “Um ser humano que achava
que a coisa mais importante na vida era tornar o outro feliz.”