segunda-feira, 3 de outubro de 2016

O PROJETO DE UNIVERSIDADE DO GOLPE CONTRA O ENSINO MÉDIO

Adriano Correia - Professor da UFG e Pesquisador do CNPq

Um governo cuja legitimidade paira sobre o vazio ou é destituído, ou parte para a tirania ou para o escambo. O governo federal putativo – enquanto não é destituído pelos mesmos agentes econômicos que o colocaram lá e agora dão sinais claros de que já querem substituí-lo – tem apostado no escambo e possui uma agenda claríssima para atender as exigências da Fiesp (reduzindo direitos do trabalhador para gerar “um ambiente favorável de negócios” e, dentre outras medidas, aumentando carga horária de trabalho, em uma matemática bizarra que diminuiria o desemprego com as pessoas trabalhando mais); dos famigerados rentistas, que abarcam a corporação acima e remontam às capitanias hereditárias (com juros pornográficos e redução de investimento público em áreas constitucionalmente definidas, como saúde, educação e previdência); dos parceiros corporativos internacionais, mas também nacionais (com privatização generalizada de empresas, bens e fundos públicos e salvaguarda jurídica nada madrasta); dos políticos profissionais e seus auxiliares envolvidos em casos comprovados de corrupção (com leis feitas sob medida para sua absolvição); e, por fim, em uma lista não exaustiva, dos que enchiam as ruas das cidades mais ricas do país, com suas camisas da CBF, suas fotos com policiais, seu ódio a toda ação afirmativa, sua exaltação “patética” (aqui, de pato) da Fiesp e sua principal cortina de fumaça: o combate seletivo à corrupção (em paródia: “se gritar olha o leão, não fica um, meu irmão!”).

A agenda do último grupo é muito mais diversa e dissimulada, ainda que não apresente novidades, e possui como pano de fundo uma nostalgia – quase ingênua, quase romântica, quase naïf – da imaginada harmonia entre casa grande e senzala no Brasil Colônia (ou, se quiserem, entre morro e asfalto, entre cidade e favela, entre a sala e o quartinho de empregadas, entre o empregador e aquele a quem ele submete à exaustão e à sub-remuneração), como nos burlescos folhetins televisivos nos quais cada um é feliz ocupando seu lugar social devido.

As demandas desse grupo vão desde o combate aos direitos trabalhistas dos trabalhadores domésticos ao valor “exorbitante” do salário mínimo, dissimuladas na cortina de fumaça do combate ao sustento dos vagabundos procriadores nordestinos beneficiados pelo Bolsa Família. Não obstante, é aí também que as demandas relativas à educação em geral e, principalmente, ao ensino universitário público, são mais candentes. A classe média, em seus vários estratos – mas obviamente não em sua totalidade e arrisco-me a dizer que possivelmente nem em sua maioria – constitui o veio principal do magma aglutinador desses adversários seletivos da corrupção. Esses estratos vêm nutrindo profunda ira contra a universidade pública, principalmente federal: pela própria ampliação do sistema e pela progressiva e tímida dissolução de sua condição de privilégio; pelo fim do vestibular (e, mais fortemente nos rincões, de seus conteúdos regionais); pelas cotas de toda sorte (sócio-econômicas, raciais, para oriundos de escola pública e de grupos sociais marcadamente marginalizados, como indígenas e quilombolas). As “pessoas de bem” chegam a se opor à bolsa permanência fornecida àqueles que, uma vez ingressados na universidade, não possuem condições de se manter na condição de estudante. Talvez não devamos esperar algo muito distinto dos que defendem o extermínio sumário dos párias que emergem da marginalidade da miséria e emulam extasiados os herdeiros playboys.

Sabemos que, a despeito das agudas dificuldades orçamentárias enfrentadas pelo sistema universitário federal, principalmente nos últimos três anos, o sistema foi praticamente duplicado nos últimos oito anos, após décadas de estagnação, e o acesso às universidades foi não apenas ampliado de modo correspondente, mas notavelmente universalizado, com a extinção generalizada do vestibular, o ingresso via exame nacional e a consolidação do sistema de cotas sociais, raciais e para egressos da escola pública (corretor da desigualdade dos pontos de partida no sistema geral de oportunidades). Desde a consolidação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como via de acesso ao ensino superior público, a oposição foi sistemática, principalmente por parte dos proprietários de cursos preparatórios e outros envolvidos na indústria do vestibular, mas também por muitos que viam na restrição do acesso à universidade a oportunidade para aceder a estratos socioeconômicos superiores ou, principalmente, consolidar e legitimar posições na estratificação de classes.

Aos pobres, o trabalho! É esta a divisa nada oculta dos arautos da “flexibilização” do ensino médio e da revogação das transformações na universidade e no acesso a ela nos últimos anos, em cujo bojo está abrigado ainda o projeto de desconstrução dos em geral excelentes Institutos Federais como centros de pesquisa e formação superior. É notório que os inúmeros conteúdos requeridos no exame vestibular tinham antes a ver com o que era possível acessar no ensino médio que com qualquer conhecimento necessário ao estudo universitário. Poucos eram os estudantes de escolas públicas que podiam sequer manter um contato mínimo com boa parte dos conteúdos requeridos, o que fazia do vestibular uma corrida desleal entre exangues, puros-sangue e raros azarões com sangue nos olhos. O Enem, em vez de focar na mera memorização de fórmulas e de regras, promoveu inicialmente uma ênfase maior na capacidade de compreensão, de interpretação de textos e de resolução de problemas, centrais à vida universitária e não apenas a ela. Foram muitas as pressões para que o exame chegasse a sua última edição mais parecido com o vestibular que jamais antes, mas isto ainda não se mostrou suficiente.

O incontido entusiasmo dos meios de comunicação corporativos com a reestruturação do ensino médio – anunciada como “flexibilização”, palavra pavorosa em nossos tempos cujo campo semântico deslocou-se para “restrição” e “privação” – já deveria ser razão suficiente para desconfiarmos de que há muito mais em jogo que o entusiasmo dos adolescentes com seus estudos, elevado a prima ratio na definição nacional do que é ou não importante na formação básica dos jovens. Se não estão interessados, para quê fazê-los aceder ao que a humanidade e especificamente nosso país vêm construindo com maior ou menor qualidade ou êxito ao longo do tempo? Se Joãozinho não gosta de história ou de artes, ou de filosofia, para quê submetê-lo a tal tormento? O seu interesse ou desinteresse não deveriam ser razão suficiente para ele mesmo definir o que estudar ou não? O seu interesse ou desinteresse não são razão suficiente para reordenar e “flexibilizar” o ensino médio? Que arbitrariedade seria oferecer um horizonte maior e mais plural para acomodar o interesse de Joãozinho!

Não é possível que se possa acreditar, com veraz boa fé, que não haja mais em jogo. No mínimo era o caso de indagar aos 7% que evadem do ensino médio se o abandonaram por desinteresse e qual a razão do presumido desinteresse e sondar que proporção desse percentual provém das escolas privadas... Como se os alunos tivessem sobrevivido na escola até o ensino médio por julgarem interessante o que viram até ali...

Qualquer formador com alguma responsabilidade sabe que é simplesmente criminoso permitir que um jovem de 13 anos decida sozinho que seus anos futuros de formação serão do tamanho dos seus interesses do ensino fundamental e dos seus apetites adolescentes. É um crime de lesa pátria a diretriz da formação nacional implicar na privação dos adolescentes e jovens da formação cultural básica, indispensável à constituição de uma identidade própria e ao pleno exercício da cidadania. Para falar consoante o vocabulário liberal: o interesse próprio deveria no mínimo poder ser um interesse esclarecido. Aliás, os amigos simpatizantes da honrada tradição liberal (Montesquieu, Federalistas, Constant, Tocqueville, Mill, Rawls e tantos outros) deveriam se desembaraçar com clareza do governo putativo, ao menos para que possam restar como interlocutores razoáveis e consistentes quando a democracia for reconstruída e restabelecida.

Quem já ensinou em escolas privadas de alto desempenho para os de renda mais alta, como eu mesmo, sabe muito bem que o Ministro da Educação pode fazer o que quiser da regulação do ensino médio que a elite econômica continuará a ter o ensino que sempre teve: tradicional, focado no conteúdo, amplo, internacional e às vezes até plural, com o dever precípuo de ocupar todo o tempo livre dos infantes. O próximo passo será possivelmente acabar com o caráter seletivo do exame nacional do ensino médio e alterar a legislação mediante alguma medida provisória para pressionar as universidades para retornar aos famigerados vestibulares, para alegria dos que vivem de sua indústria e das elites regionais – em Goiás (onde também já houve, como em várias partes do país, a “cota do boi” no vestibular), defendeu-se recentemente, com ampla ressonância nos meios de comunicação corporativos locais, que a Universidade Federal de Goiás estabelecesse cotas para os naturais destas paragens.

Não podemos compreender o futuro que nos é prometido como notável inovação sem ter à vista sua semblância gêmea de um passado que ainda não cessa de ecoar suas ladainhas, e que é tão velho quanto o projeto deste país, filho do acaso e do absurdo – e da escravidão, é claro. Todo o tímido avanço dos últimos anos no sentido de equilibrar o acesso à formação e à cultura – no horizonte da liberal igualdade de oportunidades – está claramente sob a ameaça dos nostálgicos da hierarquia social do Brasil Colônia que agora estão no comando.

Eles possuem um claro projeto de universidade: elitista; exclusivista; com “centros de excelência” nos grandes eixos econômicos e centros universitários regionais de formação de mão de obra; ancilla oeconomia; com massivos investimentos em áreas produtivas (que prometem geração de dinheiro) e abandono à míngua de tudo o que seja cultura (aquilo que fazia Goebbels ter vontade de sacar seu revólver); com o famigerado vestibular e a estranha relação entre os centros de seleção e o ensino médio privado e pré-vestibular etc.. Para tanto, é necessário, em primeiro lugar, antes de mirar a universidade, iniciar via ensino médio o escambo com os verdeamarelos do pato da Fiesp: é necessário restituir o abismo entre ensino médio público e universidade e retirar do horizonte dos jovens mais pobres o projeto de aceder ao ensino superior e, horror dos horrores, à pós-graduação e a vivências de formação no exterior.

Quando iniciei minha atuação docente no ensino superior, nos idos de 2003, na Universidade Federal da Bahia, ministrei uma disciplina de introdução à filosofia no excelente curso de Psicologia daquela universidade, em uma turma na qual havia ótimos alunos e nenhum negro ou egresso de escola pública, dentre quarenta pessoas, em Salvador. Em anos seguintes, continuei a ter ótimos alunos, mas, graças a tímidas baforadas de justiça, alguns eram egressos da escola pública e também negros, ainda pouco à vontade em um espaço que lhes era até então sonegado, mas com desempenho equivalente ao dos colegas que os acolheram, de um modo ou de outro. O que agora se nos apresenta e o que temos de enfrentar mais uma vez é nossa novidade de sempre: o passado de há dois séculos. Para dizer com Millôr, “temos um enorme passado pela frente”.

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