segunda-feira, 3 de outubro de 2016

O PROJETO DE UNIVERSIDADE DO GOLPE CONTRA O ENSINO MÉDIO

Adriano Correia - Professor da UFG e Pesquisador do CNPq

Um governo cuja legitimidade paira sobre o vazio ou é destituído, ou parte para a tirania ou para o escambo. O governo federal putativo – enquanto não é destituído pelos mesmos agentes econômicos que o colocaram lá e agora dão sinais claros de que já querem substituí-lo – tem apostado no escambo e possui uma agenda claríssima para atender as exigências da Fiesp (reduzindo direitos do trabalhador para gerar “um ambiente favorável de negócios” e, dentre outras medidas, aumentando carga horária de trabalho, em uma matemática bizarra que diminuiria o desemprego com as pessoas trabalhando mais); dos famigerados rentistas, que abarcam a corporação acima e remontam às capitanias hereditárias (com juros pornográficos e redução de investimento público em áreas constitucionalmente definidas, como saúde, educação e previdência); dos parceiros corporativos internacionais, mas também nacionais (com privatização generalizada de empresas, bens e fundos públicos e salvaguarda jurídica nada madrasta); dos políticos profissionais e seus auxiliares envolvidos em casos comprovados de corrupção (com leis feitas sob medida para sua absolvição); e, por fim, em uma lista não exaustiva, dos que enchiam as ruas das cidades mais ricas do país, com suas camisas da CBF, suas fotos com policiais, seu ódio a toda ação afirmativa, sua exaltação “patética” (aqui, de pato) da Fiesp e sua principal cortina de fumaça: o combate seletivo à corrupção (em paródia: “se gritar olha o leão, não fica um, meu irmão!”).

A agenda do último grupo é muito mais diversa e dissimulada, ainda que não apresente novidades, e possui como pano de fundo uma nostalgia – quase ingênua, quase romântica, quase naïf – da imaginada harmonia entre casa grande e senzala no Brasil Colônia (ou, se quiserem, entre morro e asfalto, entre cidade e favela, entre a sala e o quartinho de empregadas, entre o empregador e aquele a quem ele submete à exaustão e à sub-remuneração), como nos burlescos folhetins televisivos nos quais cada um é feliz ocupando seu lugar social devido.

As demandas desse grupo vão desde o combate aos direitos trabalhistas dos trabalhadores domésticos ao valor “exorbitante” do salário mínimo, dissimuladas na cortina de fumaça do combate ao sustento dos vagabundos procriadores nordestinos beneficiados pelo Bolsa Família. Não obstante, é aí também que as demandas relativas à educação em geral e, principalmente, ao ensino universitário público, são mais candentes. A classe média, em seus vários estratos – mas obviamente não em sua totalidade e arrisco-me a dizer que possivelmente nem em sua maioria – constitui o veio principal do magma aglutinador desses adversários seletivos da corrupção. Esses estratos vêm nutrindo profunda ira contra a universidade pública, principalmente federal: pela própria ampliação do sistema e pela progressiva e tímida dissolução de sua condição de privilégio; pelo fim do vestibular (e, mais fortemente nos rincões, de seus conteúdos regionais); pelas cotas de toda sorte (sócio-econômicas, raciais, para oriundos de escola pública e de grupos sociais marcadamente marginalizados, como indígenas e quilombolas). As “pessoas de bem” chegam a se opor à bolsa permanência fornecida àqueles que, uma vez ingressados na universidade, não possuem condições de se manter na condição de estudante. Talvez não devamos esperar algo muito distinto dos que defendem o extermínio sumário dos párias que emergem da marginalidade da miséria e emulam extasiados os herdeiros playboys.

Sabemos que, a despeito das agudas dificuldades orçamentárias enfrentadas pelo sistema universitário federal, principalmente nos últimos três anos, o sistema foi praticamente duplicado nos últimos oito anos, após décadas de estagnação, e o acesso às universidades foi não apenas ampliado de modo correspondente, mas notavelmente universalizado, com a extinção generalizada do vestibular, o ingresso via exame nacional e a consolidação do sistema de cotas sociais, raciais e para egressos da escola pública (corretor da desigualdade dos pontos de partida no sistema geral de oportunidades). Desde a consolidação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como via de acesso ao ensino superior público, a oposição foi sistemática, principalmente por parte dos proprietários de cursos preparatórios e outros envolvidos na indústria do vestibular, mas também por muitos que viam na restrição do acesso à universidade a oportunidade para aceder a estratos socioeconômicos superiores ou, principalmente, consolidar e legitimar posições na estratificação de classes.

Aos pobres, o trabalho! É esta a divisa nada oculta dos arautos da “flexibilização” do ensino médio e da revogação das transformações na universidade e no acesso a ela nos últimos anos, em cujo bojo está abrigado ainda o projeto de desconstrução dos em geral excelentes Institutos Federais como centros de pesquisa e formação superior. É notório que os inúmeros conteúdos requeridos no exame vestibular tinham antes a ver com o que era possível acessar no ensino médio que com qualquer conhecimento necessário ao estudo universitário. Poucos eram os estudantes de escolas públicas que podiam sequer manter um contato mínimo com boa parte dos conteúdos requeridos, o que fazia do vestibular uma corrida desleal entre exangues, puros-sangue e raros azarões com sangue nos olhos. O Enem, em vez de focar na mera memorização de fórmulas e de regras, promoveu inicialmente uma ênfase maior na capacidade de compreensão, de interpretação de textos e de resolução de problemas, centrais à vida universitária e não apenas a ela. Foram muitas as pressões para que o exame chegasse a sua última edição mais parecido com o vestibular que jamais antes, mas isto ainda não se mostrou suficiente.

O incontido entusiasmo dos meios de comunicação corporativos com a reestruturação do ensino médio – anunciada como “flexibilização”, palavra pavorosa em nossos tempos cujo campo semântico deslocou-se para “restrição” e “privação” – já deveria ser razão suficiente para desconfiarmos de que há muito mais em jogo que o entusiasmo dos adolescentes com seus estudos, elevado a prima ratio na definição nacional do que é ou não importante na formação básica dos jovens. Se não estão interessados, para quê fazê-los aceder ao que a humanidade e especificamente nosso país vêm construindo com maior ou menor qualidade ou êxito ao longo do tempo? Se Joãozinho não gosta de história ou de artes, ou de filosofia, para quê submetê-lo a tal tormento? O seu interesse ou desinteresse não deveriam ser razão suficiente para ele mesmo definir o que estudar ou não? O seu interesse ou desinteresse não são razão suficiente para reordenar e “flexibilizar” o ensino médio? Que arbitrariedade seria oferecer um horizonte maior e mais plural para acomodar o interesse de Joãozinho!

Não é possível que se possa acreditar, com veraz boa fé, que não haja mais em jogo. No mínimo era o caso de indagar aos 7% que evadem do ensino médio se o abandonaram por desinteresse e qual a razão do presumido desinteresse e sondar que proporção desse percentual provém das escolas privadas... Como se os alunos tivessem sobrevivido na escola até o ensino médio por julgarem interessante o que viram até ali...

Qualquer formador com alguma responsabilidade sabe que é simplesmente criminoso permitir que um jovem de 13 anos decida sozinho que seus anos futuros de formação serão do tamanho dos seus interesses do ensino fundamental e dos seus apetites adolescentes. É um crime de lesa pátria a diretriz da formação nacional implicar na privação dos adolescentes e jovens da formação cultural básica, indispensável à constituição de uma identidade própria e ao pleno exercício da cidadania. Para falar consoante o vocabulário liberal: o interesse próprio deveria no mínimo poder ser um interesse esclarecido. Aliás, os amigos simpatizantes da honrada tradição liberal (Montesquieu, Federalistas, Constant, Tocqueville, Mill, Rawls e tantos outros) deveriam se desembaraçar com clareza do governo putativo, ao menos para que possam restar como interlocutores razoáveis e consistentes quando a democracia for reconstruída e restabelecida.

Quem já ensinou em escolas privadas de alto desempenho para os de renda mais alta, como eu mesmo, sabe muito bem que o Ministro da Educação pode fazer o que quiser da regulação do ensino médio que a elite econômica continuará a ter o ensino que sempre teve: tradicional, focado no conteúdo, amplo, internacional e às vezes até plural, com o dever precípuo de ocupar todo o tempo livre dos infantes. O próximo passo será possivelmente acabar com o caráter seletivo do exame nacional do ensino médio e alterar a legislação mediante alguma medida provisória para pressionar as universidades para retornar aos famigerados vestibulares, para alegria dos que vivem de sua indústria e das elites regionais – em Goiás (onde também já houve, como em várias partes do país, a “cota do boi” no vestibular), defendeu-se recentemente, com ampla ressonância nos meios de comunicação corporativos locais, que a Universidade Federal de Goiás estabelecesse cotas para os naturais destas paragens.

Não podemos compreender o futuro que nos é prometido como notável inovação sem ter à vista sua semblância gêmea de um passado que ainda não cessa de ecoar suas ladainhas, e que é tão velho quanto o projeto deste país, filho do acaso e do absurdo – e da escravidão, é claro. Todo o tímido avanço dos últimos anos no sentido de equilibrar o acesso à formação e à cultura – no horizonte da liberal igualdade de oportunidades – está claramente sob a ameaça dos nostálgicos da hierarquia social do Brasil Colônia que agora estão no comando.

Eles possuem um claro projeto de universidade: elitista; exclusivista; com “centros de excelência” nos grandes eixos econômicos e centros universitários regionais de formação de mão de obra; ancilla oeconomia; com massivos investimentos em áreas produtivas (que prometem geração de dinheiro) e abandono à míngua de tudo o que seja cultura (aquilo que fazia Goebbels ter vontade de sacar seu revólver); com o famigerado vestibular e a estranha relação entre os centros de seleção e o ensino médio privado e pré-vestibular etc.. Para tanto, é necessário, em primeiro lugar, antes de mirar a universidade, iniciar via ensino médio o escambo com os verdeamarelos do pato da Fiesp: é necessário restituir o abismo entre ensino médio público e universidade e retirar do horizonte dos jovens mais pobres o projeto de aceder ao ensino superior e, horror dos horrores, à pós-graduação e a vivências de formação no exterior.

Quando iniciei minha atuação docente no ensino superior, nos idos de 2003, na Universidade Federal da Bahia, ministrei uma disciplina de introdução à filosofia no excelente curso de Psicologia daquela universidade, em uma turma na qual havia ótimos alunos e nenhum negro ou egresso de escola pública, dentre quarenta pessoas, em Salvador. Em anos seguintes, continuei a ter ótimos alunos, mas, graças a tímidas baforadas de justiça, alguns eram egressos da escola pública e também negros, ainda pouco à vontade em um espaço que lhes era até então sonegado, mas com desempenho equivalente ao dos colegas que os acolheram, de um modo ou de outro. O que agora se nos apresenta e o que temos de enfrentar mais uma vez é nossa novidade de sempre: o passado de há dois séculos. Para dizer com Millôr, “temos um enorme passado pela frente”.

Fonte:


quarta-feira, 27 de julho de 2016

PARA ALÉM DO CONHECIMENTO

Francisco Joatan Freitas Santos Júnior¹
 (Texto 10)

Todas as pessoas podem em potencialidade compreender o conceito. Mas como a gente conhece os objetos que não podem entrar em contato com a gente? Como uma forma imaterial entra em contato com a matéria? Segundo Popper (1987, p. 33): “O que há de especial no conhecimento humano é que ele pode formular-se na linguagem, em proposições”. Então, o conhecimento parte da percepção sensível que se transforma em linguagem?
Platão despreza o conhecimento sensível refletido em crenças e opiniões, considerados elementos de uma realidade inferior, tal a visão dos homens na “Alegoria da Caverna”. Ao mesmo tempo, entende a episteme, o conhecimento científico como o estágio de raciocínio e indução que alcança a essência das coisas. Na forma ideal platônica, o conhecimento precisa contemplar a essência das coisas.
Aristóteles, pelo contrário, vai valorizar o conhecimento sensível, por isso, não considera que haja diferença substancial entre conhecimento sensível e intelectual, sendo mesmo uma continuação. O conhecimento parte da observação e da experiência na visão aristotélica e pode ser dividido em seis formas: sensação, percepção, imaginação, memória, raciocínio e intuição. A intuição é a forma intelectual predominante, mas isso não significa que as outras formas de conhecimento sejam falsas, mas sim diferentes, posto que elas se originem de coisas concretas.
Na modernidade, provavelmente por influências aristotélicas, o empirismo vai considerar que o único conhecimento real é o sensível. O sujeito é capaz de entrar em contato com o mundo exterior através da atividade, percebendo o mundo objeto como cognoscível a partir da observação, revelando-se em forma de conhecimento. Considerando-se que a “observação é uma percepção, mas uma percepção que é planejada e preparada” (Popper, 1975, p. 314).
O mundo passa a existir quando o ser humano passa a pensá-lo. Esta simples constatação mostra a importância do conhecimento para o estabelecimento de uma ponte entre o sujeito e o mundo. Portanto, o conhecimento é o grande intermediário entre o ser e o mundo, entre o sujeito cognoscente e o mundo cognoscível. O mundo objeto existe fora do homem, ele é anterior ao homem e existe independente dele. O objeto existe “em si” e quem pensa é o sujeito que apreende o “para si”. Assim, o conhecimento sobre o objeto é sempre parcial. De acordo com Popper (1982, p. 55): “Não há fontes últimas do conhecimento. Toda fonte, todas as sugestões são bem-vindas; e todas as fontes e sugestões estão abertas ao exame crítico”.
Só sabemos da existência do mundo quando o objeto entra em contato com o sujeito, conhecimento sensível, apreendido como imagem, o qual pode se citar entre as faculdades do sensível ou propriedades cognitivas: atenção, juízo, raciocínio, discurso, memória e imaginação. Destarte, a pesquisa faz um recorte, um universo finito de um universo infinito, de forma a fragmentar o estudo e conhecer suas partes. A gente não conhece o calor, conhece o ar quente ou o ar frio, pois calor e frio são conceitos.
Toda percepção é singular, efêmera, seletiva e é apropriada pelo sujeito. “Contudo, Einstein jamais chegou a acreditar que sua teoria fosse verdadeira. Chocou Cornelius Lanczos, em 1922, ao dizer que sua teoria não era mais que um estágio passageiro: chamou-lhe ‘efêmera’” (Popper, 1976, p. 112). O sujeito transforma a percepção em conceito e este conceito é universal, mas não absoluto.
Observando-se o princípio de causa e efeito na natureza, o homem pode apreender o princípio de causalidade, pois tudo tem uma causa. Na filosofia do cogito de Descartes “Penso, logo existo”, ele separa dicotomicamente o corpo da mente, separa enquanto duas substâncias diferentes. Isso teve influencias nas ciências como um todo. Mas, ao contrário do cogito cartesiano, suspeita-se que o ser humano é ao mesmo tempo imanência e transcendência, finito e infinito, “penso isso, logo existo” (André Haguette). Para além de qualquer dualidade, o conhecimento está na relação social por meio da cultura.

Palavras-chaves: Conhecimento, ciência e causalidade.
BIBLIOGRAFIA
POPPER, K. R. Conhecimento objetivo. São Paulo: EDUSP, 1975.
_______. A racionalidade das revoluções científicas. In: HARRÉ, R. (Org.). Problemas da revolução científica. São Paulo: EDUSP, 1976.
_______. Conjecturas e refutações. Brasília: Ed. UNB, 1982.

_______. O realismo e o objectivo da ciência. Lisboa: D. Quixote, 1987. 

[1] Texto apresentado na disciplina de Epistemologia das Ciências Sociais, ministrada pelo Prof. Dr. André Haguette no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará - UECE.

A CONDIÇÃO HUMANA DO HISTORIADOR

Francisco Joatan Freitas Santos Júnior¹
 (Texto 09)

A dicotomia entre sujeito e objeto no estudo da História, paira no horizonte do pesquisador como uma ameaça a produzir crise de credibilidade no universo da pesquisa histórica. O aspecto da condição humana do historiador ao investigar o fato histórico, ao tornar-se objeto e sujeito no mesmo ato de análise, propicia o surgimento de desconfianças de não cientificidade da História e, portanto, revela alguns dilemas do seu desenvolvimento metodológico.
Mas que cientista social não tem esse dilema? Será que as ciências da natureza e, em particular, as ciências biológicas, de certa forma, também não vivem esse dilema filosófico?  Mesmo resguardado de certa distância temporal e usando devidamente as ferramentas científicas, o historiador tende a sofrer os efeitos subjetivos da dicotomia entre sujeito e objeto.  Parece afinal, ser um problema básico das teorias sociais.
O historiador, consciente da sua condição humana, vive o dilema de ter a si mesmo como objeto de estudo, ao mesmo tempo em que é parte interessada nos resultados de sua pesquisa.  Por isso, “nas ciências sociais sujeito e objeto pertencem à mesma categoria e interagem reciprocamente um sobre o outro.” (CARR, 2002, p. 104). 
Segundo Carr (2002), no campo metodológico da teoria da História, além de sujeito e objeto, passado e presente, paira mais adiante, a mesma dicotomia entre fatos e interpretação, sob outras formas, envolvendo o particular e o geral, o empírico e o teórico, o objetivo e o subjetivo.
O dilema do historiador é um reflexo da natureza do homem. O homem, salvo nos primeiros anos da infância e nos últimos da velhice, não é totalmente envolvido pelo seu meio ou incondicionalmente sujeito a ele. Por outro lado, ele nunca é totalmente independente dele nem o domina incondicionalmente.  A relação do homem com seu meio é a relação do historiador com seu tema. O historiador não é um escravo humilde nem um senhor tirânico de seus fatos. A relação entre o historiador e seus fatos é de igualdade e de reciprocidade. (CARR, 2002, p. 65).

O dilema da relação entre o historiador e os fatos históricos, perdura como um impasse eterno, como dúvida necessária e integrante da própria natureza humana. Mas, ao escolher os fatos relevantes dentre os fatos analisados, ele terá também se definido ideologicamente. O historiador ao escrever e analisar a História, parte da seleção dos fatos históricos disponíveis ou conhecidos em sua pesquisa. E, nesse dilema, não há imparcialidade, pois, o historiador inserido em sua práxis sociopolítica, produz e reproduz o discurso que se revela como parte, enquanto conhecimento elaborado, e sujeito que faz repensar o meio social, assim, ele interfere como “cúmplice” construtor e crítico dessa realidade social. “O historiador é necessariamente um selecionador. A convicção num núcleo sólido de fatos históricos que existem objetiva e independentemente da interpretação do historiador é uma falácia absurda, mas que é muito difícil de erradicar” (CARR, 2002, p. 48). 
Alguns historiadores acreditam na ideia de “neutralidade”, com o sentido de “cientificidade” na História, ou seja, como se fosse possível determinar objetivamente a diferença entre o fato histórico e um fato sem relevância. Como se o historiador não tivesse de fazer escolha, mas apenas determinar o fato por suas características inerentes. Como se ele estivesse acima das classes sociais ou nem existissem classes, e só pelos fatos, o historiador pudesse identificar os “heróis” e os “bandidos” na História, como se por um “ato divino” o historiador pudesse “separar o joio do trigo”.
Mas, qual o critério científico que nos possibilita ter essa certeza ao definir essa diferença?  Por acaso, os critérios seriam baseados nos documentos oficiais, extraoficiais ou no juízo do senso comum na aceitação dos fatos?
Para os pesquisadores positivistas que acreditam na objetividade da História, sinônimo de “cientificidade”, é como se a realidade falasse por si mesma, sem intermediação subjetiva do ser humano, daí certas afirmações: “contra fatos não há argumentos”. No entanto, há sempre argumentos contra fatos forjados e até contra fatos reconhecidos, por isso, a responsabilidade do historiador enquanto selecionador e investigador dos fatos históricos, se não quiser ser desmoralizado em sua credibilidade ou ser julgado pelo devir histórico.
Entretanto, se o passado não pode mudar, nosso presente pode está aberto a aprender e influenciar o futuro, de forma que a partir da seleção e interpretação dos fatos históricos, se estabeleça uma relação ou um diálogo entre passado e presente num processo contínuo e interativo. Na História é o presente (ou o final) que revela a relevância dos fatos do passado.
Palavras-chaves: História, metodologia, sujeito e objeto.
BIBLIOGRAFIA

CARR, E. H. Que é História? Conferências George Macaulay Trevelyan proferidas por E. H. Carr na Universidade de Cambridge, janeiro-março de 1961.  Tradução Lúcia Maurício de Alverga, revisão técnica Maria Yedda Linhares.  - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 8ª ed., 2002.

[1] Texto apresentado na disciplina de Epistemologia das Ciências Sociais, ministrada pelo Prof. Dr. André Haguette no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará - UECE.

O QUE NOS FAZ HISTORIADORES?

Francisco Joatan Freitas Santos Júnior¹
 (Texto 08)

A constatação de Febvre de que a “História era filha de seu tempo” (BLOCH, 2001, p. 7) nos levou à compreensão de que todo historiador é também filho de seu tempo, por isso, sem perder a referência ao ensino de História que influencia os historiadores de “primeira viagem”, nossa intenção é discorrer sobre as possíveis respostas à pergunta: o que nos faz historiadores? 
Adotamos como metodologia o estudo bibliográfico, pois nos permite dialogar com as pesquisas historiográficas de Jean Glénisson (1983) e Bloch (2001), dentre outros. Buscamos compreender as ferramentas teóricas da história que se mostram como requisitos necessários à formação do historiador e ao seu trabalho, como os conceitos de História, documentos, fontes históricas, fatos históricos e que se modificaram ao longo do tempo.
O desafio do que é ser um historiador nos leva às afirmações de Langlois e Seignobos, ao mesmo tempo em que nos esforçamos para superá-las, quando consideram que muitos estudantes seguem a carreira da História, sem consciência da dimensão do que é ser um historiador:
Assim agem sem saber por que, jamais havendo inquirido de si mesmos se estão em harmonia com os trabalhos históricos, dos quais, muitas vezes, ignoram até a própria natureza. Via de regra, a carreira da história é escolhida através dos mais fúteis motivos: porque, quando no curso secundário, se obteve êxito na matéria; porque se experimenta, frente às coisas do passado, aquela espécie de atração romântica, responsável, segundo se diz, pela vocação de Augustin Thierry; por vezes, também, porque se tem a ilusão de ser a história uma disciplina relativamente fácil. (GLÉNISSON, 1983, p, 11)

A História tem a responsabilidade de registrar o legado da produção cultural da humanidade, portanto, não pode ser considerada uma ciência de simples entendimento, e não deve ser por esse argumento indicativo de escolha profissional, pois, na verdade, esse tipo de pensamento é mais um ledo engano de quem não conhece o desafio, uma vez que o estudo histórico é bastante rigoroso.
Diante de uma sociedade que exige provas irrefutáveis de “cientificidade”, e ainda mais, com o crescimento do pragmatismo, utilitarismo e imediatismo das sociedades de mercado, assim como Bloch (2001, p. 41), o historiador enfrenta o desafio de ser constantemente interpelado sobre a utilidade da História: “Para que serve a História?” E, entre tantas possibilidades, romanticamente ele reconhece: “À história, mesmo que fosse eternamente indiferente ao homo faber ou politicus, bastaria ser reconhecido como necessária ao pleno desabrochar do homo sapiens. Entretanto, mesmo assim limitada, a questão não está, por isso, logo resolvida” (BLOCH, 2001, p. 45).
Nas sociedades modernas marcadas pela industrialização, expansão da produção e do consumismo, mesmo compreendendo-se todo o papel transformador do Homo faber e politicus, indicativo de sua historicidade e por mais que consideremos a História como inerente à natureza do Homo sapiens, não basta que ela seja necessária à plenitude conscienciosa do homem para a questão de sua importância estar resolvida.
O reconhecimento dessa necessidade não torna menos imperioso à História a utilização das mais modernas técnicas de investigação e a superação de suas limitações conceituais, ao contrário, torna-se condição singular repensar seus conceitos, principalmente, na atual perspectiva de busca pelas “verdades científicas” ou pelo aval científico.
O historiador investiga os fenômenos ou vestígios das ações humanas no espaço-tempo, principalmente, quando diante das incertezas acerca da veracidade desses conteúdos, muitas vezes, sofre pressão de instituições políticas e socioeconômicas que buscam por motivos ideológicos influir nos resultados. “Está claro que na Política e na História muitos tabus incidem sobre a origem das instituições que exercem uma autoridade sobre a sociedade, em conivência ou não com a própria sociedade” (FERRO, 2003, p. 25).
O ser historiador passa pela compreensão do conceito de História, por isso, este texto se limita aos apartes que entendem a História como uma “ciência em construção”, pressupondo a influência interpretativa do historiador e considerando que a História tem muito mais desafios e incertezas do que verdades.
Palavras-chaves: História, historiadores e ciências humanas.
BIBLIOGRAFIA
BLOCH, Marc.  Apologia da História ou O ofício de historiador.  Prefácio Jacques Le Goff; tradução André Telles.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
CARDOSO, Ciro F. S. Uma introdução à História. São Paulo: editora brasiliense, 7ª ed., 1988.
FERRO, Marc.  Os tabus da história.  Tradução de Maria Angela Villela. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
GLÉNISSON, Jean. Iniciação aos Estudos Históricos.  São Paulo: DIFEL, 4ª ed., 1983.

[1] Texto apresentado na disciplina de Epistemologia das Ciências Sociais, ministrada pelo Prof. Dr. André Haguette no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará - UECE.


NO LIMIAR DO FATO HISTÓRICO

Francisco Joatan Freitas Santos Júnior¹
 (Texto 07)

Toda ciência precisa determinar o seu objeto de estudo. No caso da História, o objeto se encontra numa indefinição conceitual, marcado por disputas com as ciências sociais e entre as próprias expressões historiográficas. Mas, segundo Popper (1982, p. 55): “Não há fontes últimas do conhecimento. Toda fonte, todas as sugestões são bem-vindas; e todas as fontes e sugestões estão abertas ao exame crítico”.
Glénisson (1983) apresenta o objeto da pesquisa histórica a partir de uma separação didática: objeto intelectual identificado como fato histórico e objeto material, referindo-se ao documento. No entanto, é muito estranha essa dicotomia entre objeto intelectual e material, pois, um objeto intelectual sem prova de materialidade é pura especulação metafísica, como também é insuficiente o argumento de que objeto intelectual e material seja a mesma coisa, numa representação exata.
Destarte, considere-se que o objeto intelectual da História é o fato histórico.  Mas como defini-lo?  Por que razões é um fato histórico?  O fato existe no documento? Em que medida? Existe diferença entre documento e fonte histórica? Não pretendemos estabelecer respostas fechadas, mas apenas dúvidas reflexivas.
A resposta dos pesquisadores, desde o século XIX, tem passado da certeza do positivismo científico à dúvida do relativismo, de forma que o conceito parece indeterminado, pra não dizer confuso. Diz Glénisson, (1983, p. 124-125): “Deveras, o que se entende comumente por ‘fatos históricos’, são os fenômenos materiais, as coisas que acontecem aos homens: os acontecimentos”. Já os historiadores positivistas, Langlois e Seignobos defendem que o fato histórico é a “matéria-prima da História”, e assim, classificam-no em “fatos materiais conhecidos pelos sentidos (condições materiais: atos dos homens) e fatos de natureza psíquica (sentimentos, ideias, impulsos), acessíveis somente à consciência” (GLÉNISSON, 1983, p. 126).
Nos ditames das ciências naturais, para um fato receber a alcunha de científico, precisaria ser “suscetível de repetição”, testado em laboratório ou que pudesse ser controlado experimentalmente. Porém, por suas dimensões e imprevisibilidade, é muito improvável que um fato possa ser reconstruído em laboratório, parecendo deslizar entre a sua objetividade e a subjetividade do historiador, como se pairasse num limbo metafísico do estudo teórico.
Popper (1974, p. 39), sobre a lógica do conhecimento e a crítica aos dogmatismos reconhece: “Admito, com sinceridade que, ao formular minhas propostas, fui guiado por juízos de valor e por algumas predileções de ordem pessoal”. Assim, neste ambiente de quase “pecado subjetivo”, precisamos determinar as qualidades do fato e identificar sua importância.
“O fato histórico é um fato social”.  Eis o que já pretendia demonstrar LévyBruhl.  “Merecerá”, escreve ele, “a qualificação de fato histórico, todo fato passado tal como se refletir na consciência coletiva, e a importância histórica destes fatos medir-se-á pela importância que tiveram na sequencia dos fatos da mesma ordem.” (GLÉNISSON, 1983, p. 129).

Dessa forma, mesmo que todo fato seja histórico, por ser constituinte de reflexão e ação humana, dificilmente ele será uniforme em seu valor e importância. O historiador terá que fazer escolha e correr o risco subjetivo no exame dos fatos, independente do critério que utilizar, seja cronológico, quantitativo ou de qualidade. O historiador é alguém que faz escolhas entre fatos primários e secundários, de acordo com a afirmação de Carr (2002, p. 48): “O historiador é necessariamente um selecionador”, significando que os fatos secundários não são descartáveis, mas cumprem papéis diferentes no processo de registro histórico.
O fato histórico enquanto objeto de estudo expressa um elemento de constituição da possibilidade científica da História, coadunando-se com a afirmação de Hamdlin (1982, p. 109): “Toda fonte é primária com respeito ao momento no qual foi feita ou escrita; e nenhuma é fidedigna exceto para os assuntos dos quais ela fornece o registro”. No exercício de pensar a História damos um passo teórico de cada vez, pois assim caminha o historiador.
Palavras-chaves: História, fato histórico e conhecimento.
BIBLIOGRAFIA
CARR, Edward Hallet. Que é História? Conferências George Macaulay Trevelyan proferidas por E. H. Carr na Universidade de Cambridge, janeiro-março de 1961.  Tradução Lúcia Maurício de Alverga, revisão técnica Maria Yedda Linhares.  8ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
GLÉNISSON, Jean. Iniciação aos Estudos Históricos. 4ª edição. São Paulo: DIFEL, 1983.
HANDLIN, Oscar. A verdade na história. Tradução de Luciana Silveira de Aragão e Frota e Yone Dias Avelino; Revisão José Eduardo Ribeiro Moretzsohn. São Paulo: Martins Fontes [Brasília]. Ed. Universidade de Brasília, 1982.
POPPER, K.R. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Ed. CULTRIX, 1974.

_______. Conjecturas e refutações. Brasília: Ed. UNB, 1982. 

[1] Texto apresentado na disciplina de Epistemologia das Ciências Sociais, ministrada pelo Prof. Dr. André Haguette no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará - UECE.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

TÉLOS NO TEMPO

Francisco Joatan Freitas Santos Júnior1
 (Texto 06)

O seguinte texto, de forma modesta, parte de um problema posto pelo Prof. André Haguette na aula de Epistemologia das Ciências Sociais: Se na Idade Média predominava uma visão mediada pela providência e, se na Idade Moderna predomina uma visão de progresso, qual a visão que predominava na Antiguidade? O próprio Haguette lança algumas possibilidades de resposta.
Na Grécia, tudo tinha uma natureza, um lugar cosmológico, um télos que aponta para uma finalidade, logo, tudo tinha uma causa, por isso, buscavam identificar as causas primeiras. Os gregos diferenciavam a essência dos acidentes, acreditando ser possível encontrar a essência ou o fundamento das coisas. Em Platão havia uma distinção entre corpo e espírito, entre ideia e corpo, portanto, a origem estava na ideia (Eidos) que existia antes do corpo, logo, o corpo era apenas uma ocasião de pensar as ideias.
A visão de mundo era repetitiva, um mundo fechado. Aristóteles era mais empírico, cientista e buscava a origem nas substâncias, diferenciando dos acidentes (cita a ideia do cavalo). Os gregos entendiam que encontrando a essência das coisas se revelaria a virtude e as pessoas poderiam buscar se comportar de acordo com suas essências, portanto, essa busca tinha um valor ético. Aristóteles vai dizer que o destino do homem é a Polis, posto que o homem é um animal político. A Polis é, portanto, anterior ao homem, no sentido natural, mas não no sentido cronológico, ao mesmo tempo, ela é sua finalidade última, seu destino final. O homem é um animal político, nasceu naturalmente para viver na Polis.
A cristandade compartilha da mesma visão grega de mundo repetitivo, mas com origem na Providência, um mundo sólido, fechado, onde o significado de sua existência encontra-se na meta-narrativa de um paraíso divino, reservado ao homem. O lugar do homem é compreender sua essência só que espelhada em Deus ou direcionada pela divindade. No mundo grego ou na cristandade existe um fundamento objetivo, em que na Grécia predominava a natureza (finalidade=télos) e na idade média predomina o teocentrismo.
O mundo moderno herda a herança grega de problematização, mas herda também a concepção judaico-histórica, mediado pela promessa da vinda do messias. Essa concepção judaica influenciará a filosofia, destacando-se em Hegel, aonde o espírito vai se realizar enquanto progresso no Estado Absoluto e, em Marx, aonde a utopia humana se realiza de forma “progressista no comunismo”.
Nietzsche vai dizer que deus morreu, isto é, eu tenho que inventar o significado, o centro passa a ser o homem (antropocentrismo). Kant diz: ousem pensar, não existe norma sem o homem. Porém, “a contemporaneidade elimina o homem, o homem que fica é o consumidor, sem religião, sem ética, sem significado ou o significado é o valor enquanto consumidor, o homem doador de significado desaparece, é descartável, deus foi descartável” (Haguette), por que o capitalismo passa a ser o sujeito na relação do homem com a natureza e entre os próprios homens. Baumamn então reconhece: “Não há nada sólido, a realidade é liquida”.
Rousseau vai dizer que a causa da desigualdade social é a propriedade privada. A natureza do homem é boa, mas a sociedade o corrompe. Diminui as diferenças entre homem e animal, pois os animais também utilizam instrumentos e possuem comunicação. Para muita gente, a ciência é o único discurso válido para a contemporaneidade, é o único discurso viável; mas, epistemologicamente, não parece ser viável esse discurso único sobre a ciência.
A religião surge da magia, por que é uma tentativa, a partir do carisma de uma pessoa, para constranger os deuses através da realização de um milagre, mas sem envolver os homens, sem uma perspectiva ética. Obviamente que em nossa sociedade moderna ainda existe magia como, por exemplo, a tentativa de descobrir o futuro.
Na Miséria da Filosofia, em sua crítica ao pensamento burguês do Sr. Proudhon, Marx (2008, p. 125) diz: “Esse modo de explicar as coisas remonta ao mesmo tempo ao grego e ao hebreu, é a um só tempo mística e alegórica, [...]”. Marx (2008), ao relegar ao plano da mística as ideias de Proudhon, parece usar o mesmo critério subjetivo para desconsiderá-las, tratando-as como não científico. É como se o pensamento moderno caminhasse do mito alegórico para o mito científico.

Palavras-chaves: Télos, mito e ciência.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

MARX, Karl. Miséria da filosofia. Tradução de Torrieri Guimarães. 2ª ed. São Paulo: Editora Martin Claret, 2008.
[1] Texto apresentado na disciplina de Epistemologia das Ciências Sociais, ministrada pelo Prof. Dr. André Haguette no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará - UECE.

sábado, 21 de maio de 2016

SOBRE O ENIGMA DO PASSADO

Francisco Joatan Freitas Santos Júnior¹
 (Texto 05)

Toda nova temática pode-se comparar alegoricamente a um parto difícil. E, recorrendo à literatura machadiana, também fará relembrar a indecisão de Brás Cubas em sua tarefa póstuma: “Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte.” (ASSIS,  2008, p. 21). Portanto, não se nega o teor literário desse texto, logo, deve-se partir do princípio, uma vez que não se trata de caso tão trágico.
Afora as narrativas alegóricas, compreende-se a História pelo que dela fizeram os historiadores, ou seja, pelos conceitos: passado, fato histórico, documentos etc., mas, nesse texto, tentando não parecer rude, limitar-se-á ao conceito de passado.
O principal objeto de estudo da História é o passado. Mas, o que se entende por passado? Segundo Hobsbawm (1998, p. 37), “os historiadores são o banco de memória da experiência. Teoricamente, o passado – todo o passado, toda e qualquer coisa que aconteceu até hoje – constitui a História”. Seguindo o pensamento de Bloch (2001, p. 75): “O passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa”. Um passado ainda “obscuro”, sujeito a investigações, não fechado em conceito definitivo, ainda não desvendado em sua constituição conceitual histórica, porquanto, é um objeto ímpar e ávido para ser interpretado enquanto conhecimento pelo historiador.
O passado é inerente à memória dos indivíduos e ao processo histórico das sociedades, no entanto, esse passado por ele mesmo é um misticismo do presente. Esse passado ideal desconhecido contempla em si os desafios que o historiador tem de se desfazer em sua pesquisa, pois o passado em seu sentido histórico só pode ser a expressão da vida social enquanto práxis humana no tempo-espaço.
Entretanto, qual a importância real da vida social para a teoria histórica? Em Marx e Engels (2007, p. 539), ela aparece nas teses sobre Feuerbach como crítica ao teoricismo metafísico: “A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na prática humana e no compreender desta prática”. No sentido geral, vida social aparece como superação do misticismo e expressão racional do fazer-se humano na prática, e na teoria histórica, torna-se fundamento da prática do historiador.
Os conceitos de passado, presente e futuro são categorias temporais e históricas difíceis de serem isoladas uma das outras, senão de forma abstrata, pois estão imbricadas na realidade histórico-cultural. Como retrata Fonseca (2014, p. 52): “Nossa opção historiográfica está intimamente relacionada à nossa postura diante do mundo”. Essa passagem esboça a influência da visão de mundo do historiador (no presente) sobre sua pesquisa, situado pelas contradições internas das sociedades do presente, sob pressões ideológicas das “lutas de classes”, que num processo invertido em direção ao passado, mas nem por isso anacrônico, é capaz de compreendê-lo em suas características próprias.
Dessa forma, o passado se revela objetivamente na práxis social dos seres humanos historicamente condicionados e sob os termos organizacionais de cada época, formando um elemento substancial e necessário para o entendimento socio-histórico do presente, com desdobramentos futuros na vida social.
Entretanto, frequentemente o homem se rebela contra as leis da História cientificista, como posto por Tolstoi (1959, p. 615): “Mas o homem, que é o objeto da História, afirma categoricamente: eu sou livre, logo não estou submetido a leis”. Na poesia como na vida, sob as condições materiais e subjetivas posta, nada mais eficaz que uma rebelião para se construir algo novo e se repensar os valores humanos.
Palavras-chaves: História, passado e práxis social.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Campinas: Editora Komedi, 2008.
BLOCH, Marc.  Apologia da história ou o ofício de historiador.  Prefácio Jacques Le Goff; apresentação brasileira, Lília Moritz Schwarcz; tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de história: experiências, reflexões e aprendizados. 13ª ed., rer. E ampl. Campinas, SP: Papirus, 2014.
HOBSBAWM, Eric.  Sobre história.  Tradução Cid Knipel Moreira. 5ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
MARX, Karl; ENGELS, F.. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2007.
TOLSTOI, Léon. Guerra e paz. Tradução de Gustavo Nonnenberg. 1ª ed. 6ª impressão. Rio de Janeiro, RJ: Editora Globo, 1959.


[1] Texto apresentado na disciplina de Epistemologia das Ciências Sociais, ministrada pelo Prof. Dr. André Haguette no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará - UECE.

TEOR ÉTICO DO TRABALHO EM MARX

Francisco Joatan Freitas Santos Júnior¹
 (Texto 04)

Marx tem uma visão do trabalho na sociedade capitalista enquanto instância negativa e positiva, por isso, é capaz de reconhecer a dimensão ampla do trabalho descrevendo-o como instância criadora, como atividade exclusivamente humana e promotora do humano. Quando o homem interfere na natureza usando suas energias, transforma-a em utilidade para si e por ele é transformado, daí a afirmação de Marx (2013, p. 255): “Pressupomos o trabalho numa forma em que ele diz respeito unicamente ao homem”.
Na concepção marxista se encontra implicado uma dimensão positiva do trabalho, na qual nenhum ser humano está isento do trabalho para manutenção da própria vida. “O trabalho é, antes de tudo”, segundo Marx (2013, p. 255), “um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza”.
Arrisca-se dizer que a reflexão marxiana a respeito do trabalho alcança uma análise ética. Isso se dá por não tirar do trabalho sua centralidade, e, assim, investigar o trabalho em seu confronto com o existir do homem. É ético porque visualiza uma posição moral no seio da relação de produção, onde o homem “possuidor de dinheiro”, no contexto da sociedade de mercado, estabelece uma relação de troca com seu semelhante em que a sua “capacidade de trabalho, ou força de trabalho”, mera ferramenta de produção, é exposta à venda “como mercadoria no mercado” (MARX, 2013, p. 242).
Jacob Gorender, ao contrário, considera que nos Manuscritos “Marx ainda não podia explicar a situação de desapossamento da classe operária por um processo de exploração”, e que, portanto, havia uma “[...] impossibilidade de superar a concepção ética (não científica) do comunismo” (MARX, 2013, p. 19-20). Diferentemente de Gorender, pensa-se que em O Capital, a concepção ética subsiste de forma implícita na denúncia das condições de vida dos trabalhadores, ao mesmo tempo, em que elabora uma crítica científica ao trabalho abstrato, enquanto instância de alienação objetiva que expropria as energias vitais do trabalhador, na perspectiva de sua superação. Nesses termos, enquanto denúncia fática, não haveria uma posição ética em Marx?
A visão marxista em torno da categoria trabalho se explica na compreensão de que na sociedade capitalista o trabalho aparece como instância exploradora e negadora da existência humana. Cabe explicar, que não se trata de uma oposição gratuita ao trabalho, mas uma crítica a um modelo específico de trabalho, ou seja, o trabalho abstrato que soe acontecer no interior das sociedades de mercado. Assim, como toda sua teoria, não apenas o trabalho está posto enquanto crítica dessa sociedade, mas a sua própria teoria aprofunda o questionamento sobre as bases materiais da exploração capitalista com força e consistência epistêmica.
O trabalho, nesse contexto, emerge como a mola propulsora do capitalismo. Esse operário, sinônimo de produção, é paradoxalmente, tratado pelo capitalista apenas como ferramenta, tendo em conta que seu salário não expressa a riqueza que o mesmo produz, ao contrário, só serve como base de reprodução da existência, para poder retornar cotidianamente como operário ao posto de produção. A riqueza por ele gerada fica acumulada para o proprietário. Esse trabalho abstrato em que o operário não tem acesso ao seu produto é criticado por Marx (2013). Tendo em vista que o fenômeno que emerge dessa relação é do produto que se opõe ao seu criador, a sociedade de mercado subverte os valores de tal modo que a coisa ganha status de persona e a pessoa é reduzida à coisa. O trabalho abstrato, portanto, coisifica o homem.
Contudo, a invasão sofrida por essa dimensão do trabalho, pelo trabalho abstrato, que reduz tudo a produto, inclusive o próprio homem, é que se torna alvo de investigação e crítica de Marx.
A teoria de Marx é, sobretudo, uma teoria do engajamento social. Percorre seu pensamento uma ética. Não uma ética no sentido burguês de ser, em que a manutenção da situação vigente deva ser preservada, mas uma ética que considera o ser humano enquanto tal, e não apenas como instrumento em uma linha de produção.         
Palavras-chaves: Trabalho, ética e marxismo.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
MARX, Karl. O capital - crítica da economia política - Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.

[1] Texto apresentado na disciplina de Epistemologia das Ciências Sociais, ministrada pelo Prof. Dr. André Haguette no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará - UECE.

A DÉMARCHE DA PESQUISA

Francisco Joatan Freitas Santos Júnior¹
 (Texto 03)

Toda pesquisa científica parte do estudo de um fenômeno pouco conhecido em direção aos aspectos mais desconhecidos de um fenômeno, por isso, todo começo é um desafio. Nesse raciocínio, Bloch (2001, p. 67) considera que “a démarche natural de qualquer pesquisa é ir do mais ou menos mal conhecido ao mais obscuro”.
De fato, o começo de toda pesquisa social-científica é um complexo de incertezas. Marx (2013, p. 77), no prefácio à 1ª edição de O Capital sentencia: “Todo começo é difícil, e isso vale para toda ciência”. No entanto, pelo conjunto de sua obra, Marx deixou transparecer o “estado de espírito” de um investigador abnegado e que por toda a sua vida se dedicou a desvelar os difíceis liames do capitalismo. No mais, em relação a qualquer experiência de produção textual de Marx, o desafio desse texto é infinitamente menor.
Mas, quais os passos fundamentais de uma pesquisa social? Partindo da dúvida sobre seu próprio pensamento, Descartes (2000, p. 41), mentor da ciência moderna, afirma: “Penso, logo existo”. Outros partem dessa certeza numa sequência a moda cartesiana: objeto, problematização, hipótese, metodologia, relevância. Do ponto de vista ideal, alguns filósofos querem saber a “verdade” sobre si mesmo, o universo, um objeto qualquer. Talvez, o primeiro momento da ciência seja desafiar o senso comum e indagar sobre o que está por trás do óbvio.
Noutra direção, na tentativa de superar o idealismo em ciências sociais, a tradição marxista parte do pressuposto teórico-metodológico do materialismo histórico, considerando que a condição técnica para o progresso de qualquer trabalho científico, em termos dialéticos, é sempre vislumbrar a totalidade do real, numa relação que parte dos aspectos mais simples aos mais complexos e vice-versa.
O objeto de toda pesquisa social na perspectiva marxista situa-se historicamente num tempo e espaço determinado, compreendendo-se que “tempo e espaço são categorias construídas que se desenvolvem em determinado momento e espaço históricos” (MAIA FILHO et al., 2014, p. 9). A tradição marxiana, grosso modo, parte do pressuposto de que as bases econômicas da sociedade, sob a égide do sistema mundial produtor de mercadorias, são fundamentais na análise de qualquer objeto de estudo. Portanto, conforme o contexto sócio-histórico, o objeto de estudo e os objetivos da pesquisa, e nos limites de tempo exigido, as categorias de análises próprias da pesquisa social podem ser o próximo passo a ser explicitado por um pesquisador.
Do ponto de vista epistemológico, subtende-se, a priori, que a ciência investiga uma realidade objetiva apoiada numa reflexão filosófica, e provavelmente, utiliza-se de procedimentos metodológicos rígidos na tentativa de apreensão da realidade concreta pelo pensamento abstrato. Emir Sader diz, na apresentação do clássico livro A Ideologia Alemã, que a “busca do conhecimento e da verdade pelo pensamento humano partiu sempre da dicotomia entre sujeito e objeto” (MARX; ENGELS, 2007, p. 9). Mas, como superar essa dualidade metafísica? Como perceber o movimento real entre sujeito e objeto? A superação dessa dicotomia continua sendo uma questão posta a todos os grandes filósofos.
O viés epistemológico que discute a relação entre sujeito e objeto, a determinação da matéria como anterior ao espírito, ou vice-versa, ergue-se como “campo de batalha” por excelência do pensamento filosófico, por ser o espaço de reflexão sobre o caráter e a natureza da realidade. Mesmo após a dialética recuperada por Hegel e depois “invertida” por Marx, a relação epistemológica entre matéria e espírito continua sendo um problema filosófico cheio de controvérsias e de quase nenhum consenso.
Palavras-chaves: Pesquisa, objeto e epistemologia.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
BLOCH, Marc.  Apologia da história ou o ofício de historiador.  Prefácio Jacques Le Goff; apresentação brasileira, Lília Moritz Schwarcz; tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
DESCARTES, René. Discurso do método: regras para a direção do espírito. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Editora Martin Claret, 2000.
MARX, Karl; ENGELS, F.. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Supervisão editorial Leandro Konder; tradução, Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.
MARX, Karl. O capital - crítica da economia política - Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.
MAIA FILHO, O. N.; Chaves, Hamilton Viana; Ribeiro, Luis Távora Furtado; Sousa, Natalia Dias de Sousa. O impacto da aceleração tempo-espaço nas relações de produção. – In: Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 21, n. 2, mai./ago. 2014. Disponível em: <http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa/article/view/2768/1570>. Acesso em: 18/maio/2016.

[1] Texto apresentado na disciplina de Epistemologia das Ciências Sociais, ministrada pelo Prof. Dr. André Haguette no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará - UECE.