quinta-feira, 17 de maio de 2012

A lenda: Carlos Marighella


Cinema

Esse tio Carlos...

Em documentário, Isa Ferraz reconstrói a história de seu tio, Carlos Marighella

Por: Nina Fideles 

Publicado em 22/10/2011

Isa (atrás de Marighella) mostra aspectos desconhecidos da vida do tio (foto: © divulgação) 
 
Perto do centenário de nascimento de Carlos Marighella, a ser completado em 5 de dezembro, Isa Grinspum Ferraz, socióloga, documentarista e também sobrinha dele, construiu um filme especial sobre a trajetória de um dos mais importantes militantes de esquerda do século 20. Marighella tem 100 minutos e 32 depoimentos, entre eles o do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o do intelectual Antonio Candido, e participação do ator Lázaro Ramos e do rapper Mano Brown, do grupo Racionais MC’s. A proposta é mostrar outras faces do revolucionário que viveu clandestinamente grande parte de sua vida.
É impossível contar a história do Brasil do século 20 sem citar seu nome. Marighella foi perseguido por duas ditaduras, maldito nos anos de chumbo e jogado à obscuridade por décadas de censura. Se a literatura já oferece algum conteúdo a respeito desse personagem, Isa Ferraz encontrou na linguagem do cinema espaço para desvendar aspectos pouco conhecidos da trajetória do tio, negada a muitas gerações.
Poucos sabem, por exemplo, que mesmo clandestinamente o líder comunista se vestia de mulher para pular carnaval. Era engraçado, amava música e a Bahia. “Era uma figura doce, cuidadosa, que deixava florzinhas para as meninas no café da manhã, quando saía na calada da noite. Fazia paródias com as músicas de Roberto Carlos. Adorava Jackson do Pandeiro e Dorival Caymmi. Era livre e inquieto. Lia de tudo. Estudava a Bíblia, apesar de ser ateu”, descreve a sobrinha. Para realizar o documentário, a cineasta teve de se desdobrar com as “20 e poucas fotos” que foram encontradas na longa pesquisa. “A gente não achou nenhuma imagem em movimento. O grande desafio foi contar essa história sem nenhuma imagem dele, e assumi isso como linguagem”, explica.
O filme começa a partir da descoberta de que o “tio Carlos” era quem era. Após o sequestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, no dia 4 de setembro de 1969 – que rendeu a libertação e asilo político a 15 prisioneiros –, a perseguição aos militantes se intensificou. “Naquele momento meu pai resolveu me contar, pois tinha medo que eu visse os cartazes na rua e identificasse o meu tio. Convivia com ele dentro de casa sem saber que era ‘o’ Marighella. Essa figura que eu gostava muito e, ao mesmo tempo, era a pessoa mais procurada no Brasil. Mas daí eu não o vi mais.”
Marighella, então com 57 anos, foi assassinado em uma emboscada articulada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, do extinto Departamento de Ordem Política e Social (Dops), na cidade de São Paulo. “Eu tive acesso a outro lado dele. É o meu Marighella. Mas não é só o meu. É o do Brasil”, define Isa.

Pedras, poemas, mil faces

Para definir Marighella, Mano Brown, convidado para criar uma música inédita que finaliza o filme, recorreu às palavras utilizadas em sua composição: Mil Faces de um Homem Leal. “Difícil definir um cara desses, que botou a cara pra morrer. Ele era um romântico. Um sonhador que levava a realidade no limite.” O rapper conhecia pouco de Marighella até receber o convite da cineasta. Alguns amigos já haviam comentado semelhanças entre eles, como ser filho de uma negra com um branco, ser baiano, “assumir a cor e levar isso muito a sério sem discriminar ninguém”.
Brown revela que a construção teve de se realizar a partir das impressões de outras pessoas a respeito­ do personagem retratado na música. “Ele não era um personagem do meu convívio. Se fosse da nossa geração provavelmente seria um amigo nosso.” Depois de “ficar com essa música na mão” por quatro meses, foi nos últimos 30 dias que conseguiu embalar. “Não sabia por onde começar. Assisti ao filme e fui no tato. Não podia plagiar os livros que já fizeram dele nem o filme. O cinema é uma arte, o rap também é. Não foi um rap igual aos outros que fiz.”
Isa considera importante mostrar para as gerações de hoje, “muito apegadas aos bens de consumo”, que uma geração inteira largou tudo – família, amigos, estudos – para entregar a vida por uma ideia de país­. E comemora conseguir com o filme algo “quase inimaginável” hoje em dia. “Trazer o Mano Brown e até mesmo o Lázaro Ramos ajuda a levar essa história a um público que não a conhece ainda.”
Mulato, filho do imigrante italiano Augusto Marighella, operário e anarquista, e da baiana Maria Rita, filha de escravos vindos do Sudão, o revolucionário teve uma longa trajetória de militância. Em 1932, com apenas 18 anos, ingressou no Partido Comunista do Brasil (então PCB) e ao mesmo tempo no curso de Engenharia Civil. Sua primeira prisão, com 21 anos, foi causada por um poema em que criticava Juracy Magalhães – nomeado por Getúlio Vargas interventor no estado da Bahia –, que mais tarde seria presidente da Petrobras (o primeiro) e também da Companhia Vale do Rio Doce.
Quando foi eleito deputado constituinte pelo estado da Bahia, em 1945, já havia experimentado a prisão por um ano, em 1936, e depois por mais seis, a partir de 1939. No presídio de São Paulo, dizia-se que, se havia um “macho” no PCB, este seria Marighella, que chegava a rir na cara de torturadores. Escreveu livros, poemas e empunhou armas contra a ditadura. Era uma pessoa muito “difícil de descrever com poucas palavras”, diz Clara Charf, mulher do militante desde 1947 até o dia de sua morte, em 4 de novembro de 1969, exatamente dois meses após o sequestro.
Suas relações com países da América Latina e da Europa foram amplas. Cuba chegou a referenciá-lo como o principal nome da revolução no Brasil. Contos, poemas e livros de Marighella foram traduzidos para diversas línguas. “Os Panteras Negras liam Marighella, as Brigadas Vermelhas, na Itália. Cineastas franceses, italianos contribuíam com a luta armada no Brasil, com a ALN. E provavelmente vão aparecer muitas coisas ainda, pois pessoas que tinham medo de falar agora se veem mais à vontade”, acredita Isa Ferraz, que não consegue dissociar a veia política do tio de sua veia poética.
Ficaram famosos versos que inventava em respostas a questões de física e matemática nas provas da faculdade. Quando esteve preso em Fernando de Noronha (PE) por três anos, antes de ser transferido para Ilha Grande (RJ), organizou trabalho cultural na ilha. “As pessoas não podiam fugir porque tinha tubarão, não podiam receber visitas, não podiam fazer nada. Ele achava que se não tivessem ocupação iriam enlouquecer. Ele ensinava matemática, ciências, filosofia”, diz Clara.
O fato de ter rompido com o partido em 1967 e optado pela luta armada contra a ditadura ao fundar a Ação Libertadora Nacional (ALN) levou o rosto de Marighella aos cartazes de “procurados” no país. Para o regime militar, era inimigo número um, bandido, monstro, assassino, terrorista. Ao contrário disso, como conta Clara Charf, por onde passou deixou uma imagem de pessoa solidária, valente, corajosa. “Um ser humano que achava que a coisa mais importante na vida era tornar o outro feliz.”

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